
Na
minha última postagem, falava eu sobre o que considero ser as linhas
estruturais que nortearam as tendências do cinema de ação em Hong Kong. As duas
escolas centrais, uma mais literária e prosaica, outra mais operística e
poética, geravam certas linhas colaterais que, de modo indireto, acabaram
formando uma espécie de terceira escola, com influência de ambas as outras duas
e capitaneada por antigos diretores de ação dos estúdios Shaw.
Esta postagem de agora é uma espécie de destrinchamento
da análise dessas linhas colaterais, mas mais propriamente se trata do
discernimento de onde a obra de Lau Kar-Leung influenciou uma das figuras mais conhecidas
do cinema de kung fu, Jackie Chan, ou seja, se trata de verificar os pontos de
contato entre as obras de ambos e estabelecer em que instância estabelecem
certo parentesco.
***
Poucos percebem, mas é muito provável que, entre os
filhos dos Shaw Brothers, Lau Kar-Leung seja o diretor cuja obra mais ficou
impressa na cultura popular: dois dos clássicos do kung fu mais assistidos e
lembrados são dele, Eight Diagram Pole Fighter e A 36ª Câmara de Shaolin, e o
próprio Kill Bill, tão famoso por ser derivado em certos pontos do legado da
SB, é muito mais fruto de uma derivação dos grandes clássicos deste diretor do
que da herança da produtora em geral.
Desde já, isso já seria um motivo de encontro com a mesma
medida (até aumentada) de sucesso do seu pupilo, Chan. Mas aí se trataria de
estabelecermos aqui todas as causas, inclusive históricas, muito difíceis de
delimitar hoje, do sucesso de ambos, o que se tornaria um exercício improdutivo
e impreciso. O que importa é, com essa afirmação inicial e de algum modo,
perceber-se que há, pelo menos, um elemento estético bem verificável tanto em
um quanto em outro que, muito provavelmente, serviu de estímulo para a grande
difusão de ambas as obras. E este elemento é o que eu preferirei chamar aqui de
“virtuosismo da ação”.
Não é segredo para ninguém que Lau Kar-Leung foi, antes
de cineasta propriamente, diretor de ação, principalmente nos dramas de amizade
masculina e ode à cavalaria de Chang Cheh. Sobre as influências que este
período gerou na sua obra posterior, já escrevi anteriormente. Então prefiro me
ater agora àquilo que o ofício de diretor de ação produziu enquanto legado para
esta obra que viria pela frente.
A primeira - e mais óbvia das heranças - é o fato de que
se no cinema de Cheh, por exemplo, a ação dos atores, os seus atos de combate
são espécies de encarnações das suas necessidades vitais e das suas tragédias
pessoais, assim como instrumentos para levar a cabo as intenções que permeiam
todo este ambiente trágico e existencial, no caso de Kar-Leung o kung fu é, ele
mesmo, um próprio “estilo de vida”, ou, mais propriamente, uma porta para uma
nova vida, para uma nova forma de ver o mundo. Em ambos os casos, as artes
marciais são um instrumento, mas exercem funções muito diversas: se no primeiro
o kung fu é a via para a realização dos objetivos dos protagonistas e, muitas
vezes, uma espécie de veículo para fazer com que as tragédias ou as vinganças
se perpetuem, no segundo são os próprios objetivos dos protagonistas que se
tornam uma espécie de instrumento primeiro para que se chegue no kung fu, ou
seja, o intuito da realização de uma tarefa (uma vingança, por exemplo), em
Kar-Leung, é um meio que faz com que o realizador desta tarefa aprenda as artes
marciais para realizá-la. E é neste ponto que a moral da história fica
evidente: agora aprendido o kung fu, ele passa a mudar a vida do seu praticante,
lhe dá coragem, nova força, se torna o segundo instrumento que leva ao objetivo
final da realização existencial do guerreiro.
É muito interessante, inclusive, perceber com que
mecanismos tudo isto funciona. A estrutura pode variar de caso para caso, mas
geralmente se encontra assim na relação entre os protagonistas dos filmes: há o
esquema de mestre e discípulo; este último recebe, sem entender muito bem,
ordens das mais variadas do seu tutor, geralmente absurdas, afazeres diversos e
meio domésticos que parecem mais uma espécie de escravidão do que de
aprendizado do kung fu; em algum momento, o discípulo vai percebendo como estas
ações simplórias do dia-a-dia, estas ações humanas corriqueiras têm a ver com
as ações das artes marciais e podem contribuir muito para o tal aprendizado. Ou
seja, basicamente, para Kar-Leung, conhecendo a física das coisas, acaba-se por
conhecer o kung fu. E, naturalmente, o kung fu, em contrapartida, passa a nos
ajudar também a ver as coisas por um melhor ângulo.
É curioso que, neste sentido, se possa fazer outro
contraponto com Chang Cheh: como em seu cinema a ação é mero instrumento de
cumprimento da sina de cada personagem, o seu aprendizado ou a sua prática não
são redentoras, somente o seu efeito (a morte de alguém, por exemplo) e, mesmo
assim, nem sempre. E isto é uma cabal exemplificação para entender-se o cerne
da sua obra, que, se por isso não se torna propriamente pessimista, se torna
profundamente trágica (onde a ação serve como instrumento do cumprimento do fado)
e heroica (onde a ação serve como instrumento para uma finalidade honrada). Já
em Lau Kar-Leung, a própria ação (e não a sua finalidade) é, propriamente,
redentora, porque, se somos praticantes dela, é porque entendemos melhor a
mecânica do mundo e, se entendemos melhor o mundo, entendemos melhor, também,
nossa função nele, ou seja, nossa existência.
A partir disso tudo é plenamente possível que se perceba
aí um cinema que evoca (até pela própria formação de seu autor) a arte marcial
como parte integrante e inseparável da vida de alguns homens (seus personagens)
que souberam ver a existência de um modo peculiar e virtuoso. Assim, neste
universo, o homem que aprende o kung fu não mais o separa da sua vida ou o
instrumentaliza meramente, mas o vive, como se vivesse numa espécie de
“espírito do kung fu”.
Essa unidade inseparável entre vida e arte marcial e,
mais propriamente, de ações quotidianas e ações de combate é que caracterizarão
a segunda herança, já menos óbvia, do ofício de diretor de ação para a obra
posterior de Kar-Leung: há nela uma espécie de virtuosismo da ação, passível de
verificação em quase todas as suas obras onde estes valores aqui citados são
mais evidentes. Para o cineasta, a facilidade no manejo das ações de combate é diversas
vezes comparável com aquela com que os mesmos combatentes realizam as suas
ações quotidianas. Ou seja, para o herói de Lau Kar-Leung, lutar é como lavar
pratos ou encerar a casa, até porque ele já percebeu que lavando pratos ou
encerando a casa pode muito bem aprender sobre o kung fu, de modo que, para
ele, o combate é perpetrado sempre com muita habilidade e destreza, mas, acima
de tudo, sempre com muita tranquilidade, com um certo charme de quem “não está
nem ligando” para o que seu oponente tem a oferecer. É isto que aqui chamo de
virtuosismo. Não se trata de pensar nos atores das ações como arrogantes que
não se comovem ou não têm nenhum medo absolutamente, mas de perceber que tratam
a ação de combate com uma naturalidade ímpar, tornando-se, assim, virtuoses.
Muitas vezes este charme do virtuosismo é tido, neste
âmbito, como uma espécie de ato de ministrar joguetes ou de, em algum momento,
caçoar do adversário, que muitas vezes se atrapalha ao não conseguir adivinhar
os próximos passos tão naturalmente perpetrados pelos heróis/protagonistas, o
que se deve principalmente ao fato de que o virtuose, ao ser um exímio
praticante da sua ação virtuosística, é também um improvisador: sempre pode
criar, no caso do kung fu, um golpe inusitado ou novo ou, ainda, confundir os
desavisados com uma série de ações bem encadeadas e pouco previsíveis.
São estes joguetes e estes atos de caçoar típicos dos
virtuoses de Kar-Leung que conferem ao seu cinema um outro elemento: uma
espécie de tom cômico extremamente cativante para com os espectadores, que
parecem sempre alegres e entusiasmados, não só pelo espetáculo da ação bem
concebida (e bem filmada), mas também pela própria discrepância entre estas
espetaculares artimanhas e aquelas que são perpetradas pelos inimigos daqueles que
as põem em prática. Assim, o cinema de Lau Kar-Leung é um cinema de ação por
excelência, onde a ação é centralíssima (não só como evento estético cuja
apreciação é o ponto principal das obras, mas como modo de realização
existencial), mas que também, por esta própria centralidade da ação, acaba se
enveredando pela comédia. Ou seja: é cinema em que o próprio virtuosismo na
ação se torna um fato cômico em sua própria excelência virtuosística.
É natural que este elemento estético se tornasse, até
mesmo pelo caráter mais vendável de um cinema de kung fu mais virtuosístico (já
estabelecido internacionalmente em Bruce Lee), fator chave para a maior
popularidade mundial e a maior perpetuação enquanto herança do cinema de
Kar-Leung em detrimento dos demais cinemas contidos na Shaw Brothers. E é este
um mesmo motivo central para a popularidade de Jackie Chan.
É notório que Chan tenha trabalhado com Kar-Leung em sua
juventude, inclusive tendo os dois contracenado juntos num filme dirigido pelo
segundo. O filme é o já clássico Drunken Master, onde Jackie Chan se vê
confrontado com o aprendizado mais que heterodoxo de uma espécie de kung fu que
alcançava seu maior potencial quando o praticante estivesse bêbado. Era, claro,
mais uma faceta dos virtuosismos de Kar-Leung e os resultados, por mais
contestáveis que fossem em alguns aspectos da obra, alcançaram o sempre
desejado nos demais casos: séries de cenas cômicas em que o cambalear do ébrio
serve mais para ajuda-lo do que para atrapalhá-lo ao estapear os mais diversos
bandidos. No fim do filme, naturalmente, Chan acaba por levar uma vida mais
regrada e acaba fazendo as pazes com seu pai, com quem havia brigado, mas é
claro que tudo isto só é possibilitado pela experiência vital contida no seu
aprendizado singular do kung fu.
É possível que digamos, à luz do próprio Drunken Master,
que Chan aprendeu bastante a lição do velho mestre Lau, não só por meio de seu
personagem no filme em questão, mas no seu próprio ofício de cineasta: não é
marca registrada de seu cinema este tal virtuosismo do qual tanto falamos? E
também, por este mesmo virtuosismo, não é marca do seu cinema o caráter cômico?
É claro que é possível que falemos de um Chan de influência dupla, como eu
mesmo falei em minha última postagem: Sammo Hung também foi seu professor no
ofício da comédia, mas o caráter cômico do virtuose, este só existe estruturado
tal e qual discernimos aqui em Lau Kar-Leung.
Seria possível também objetar, para derrubar toda a
argumentação aqui proposta e não só a do parentesco entre Lau e Jackie, que o
próprio Kar-Leung não baseia inteiramente seu cinema neste virtuosismo cômico
(onde estaria isto em Eight Diagram Pole Fighter?), mas isto seria bastante
incorreto, primeiro porque tratamos aqui de um elemento central que o seu
cinema evoca, mesmo que não direta ou inteiramente em todos os filmes. O certo
é que, enquanto diretor de ação tornado cineasta, Lau Kar-Leung pôs o kung fu
em tal situação de protagonismo em sua obra que já não era um mero títere
secundário, mas fator central, elemento da análise mesma dos filmes enquanto
obras de arte que se debruçam diante de determinada realidade. A partir daí, todo
o resto, inclusive sobre o que digressionamos aqui, é consequência, mas
consequência que nunca deixa de permear direta ou indiretamente todo o espírito
de sua obra singular. Porque se todo artista acaba, enquanto autor de suas
obras, por imprimir seu olhar sobre o mundo no cerne de todas elas e de suas
respectivas estéticas, o olhar de Kar-Leung é, antes de tudo, o olhar do
artista marcial, de uma espécie de “físico involuntário”, que aprendeu a ver o
mundo por este olhar e que aprendeu, com o mesmo olhar, a viver melhor no
mundo. Isto é, sem dúvidas, uma verdade incontornável.