
Há mais ou menos um mês
pude conferir este novo filme de Sofia Coppola, “The Beguiled”, refilmagem do
célebre filme de Don Siegel. Por um motivo ou por outro, adiei a confecção de
um texto sobre o filme, mas agora o faço, não porque o filme, em si, tenha
alguma importância (se temos sempre que escolher, entre tantos filmes, sobre os
quais escreveremos, certamente este novo Beguiled não seria, por suas
qualidades, das primeiras opções), mas porque, de algum modo, me surpreendeu.
Me lembro que, à época do anúncio de que Coppola faria
uma versão deste clássico, houve muitas vozes para dizer que aquilo seria uma
espécie de sacrilégio, um filme abominável e um tanto iconoclasta, que tentaria
substituir Clint Eastwood por algum fanfarrão hollywoodiano qualquer e o gênio
de Siegel pela inépcia da diretora escolhida para a produção, que já nos
últimos anos estava evidente. Ou seja: esperava-se uma espécie de aberração.
E a surpresa veio no seguinte: se o filme está
incomensuravelmente distante da sua versão da década de 1970, não se pode
dizer, de fato, que seja uma abominação. É, antes, um filme completamente
estéril, completamente desprovido de qualquer relevância, a verdadeira
expressão em filme daquilo que nós costumamos dizer ser “uma obra passável”. E
isto tanto num campo que tange mais às ideias quanto num outro, que tange mais
às formas.
Se a ideia de refilmar o clássico de Siegel pelas mãos de
Coppola parecia a ideia de um projeto inútil (não tanto propriamente pela
sugestão de uma revisita àquela obra, visto que já houve refilmagens de
“clássicos absolutos” muito bem sucedidas – Losey para o “M” de Lang, por
exemplo –, mas por esta revisita, justamente, ser perpetrada por uma diretora
inapta), ela é bastante pouco perto da inutilidade real do filme: a tabula rasa
que é o novo “The Beguiled” é “rasa” porque se configura como um produto de
certa estética que, paulatina e perniciosamente, veio permeando o cinema de
Coppola e que, agora, chega no ápice de sua expressão.
Acontece que, pelo menos desde de “Somewhere” (talvez
desde “Maria Antonieta”, mas este é um filme que não revejo há muitos anos), há
uma postura em Coppola, enquanto artista, que promove certa apatia constante em
suas obras. No próprio “Somewhere” esta postura e seus mecanismos ficam um
pouco evidentes: o plano inicial é uma espécie de looping de manobras de um
carro, que gira e gira, sempre num mesmo traçado, sem saber aonde ir e
terminando sempre no mesmo ponto. É o plano de apresentação do protagonista,
que metaforiza a sua própria condição diante do mundo: um ator em crise
existencial que, em certo momento, vê seus rumos mudados pelo convívio com sua
filha de 11 anos. Desde aí havia uma determinada preferência de Coppola por
temas como a indiferença em relação ao mundo ou a ausência de compreensão do
sentido da existência. Se isto permanecesse no campo das predileções de seus
personagens (certas vezes, mesmo que não necessariamente, até revertidas por críticas
que se verificassem ao longo das obras ou por quaisquer mudanças nas próprias
perspectivas de mundo destes personagens) não haveria problemas, em si. O
curioso é que isto parece redundar na própria visão de Coppola sobre suas
obras, sua visão sobre o “mundo particular” que é o mundo de seus filmes: há,
desde “Somewhere”, a insistência por uma distância entre a diretora e seus
personagens, com suas vivências e posturas diante do mundo; uma certa de
preferência por um posicionamento neutro e desprovido de julgamento, não num
sentido mulliganiano de compreensão das limitações humanas, mas numa espécie de
agnosticismo moral, que parece ver-se incapacitado naturalmente ao juízo ou que
pelo menos não se importa em exercê-lo. Para fora do que concerne a este ato de
julgar, este agnosticismo é também uma forma de negar-se propriamente a
discernir as próprias motivações das ações de seus personagens, ou seja, em
última instância se configura num isolamento total, onde simplesmente se relata
uma série de atos humanos sem lhes inferir propriamente um juízo de valor nem
lhes discernir as causas.
A
partir daí, Coppola parece se fiar, em suas obras, numa estética que torna seus
filmes uma mera apresentação de mundos exóticos e de ar certamente mistérico,
que veem no espectador uma espécie de voyeur. Aqui, parece haver a aposta no único
elemento que, proveniente deste seu mecanismo, poderia favorecer suas obras: o
mistério que está por trás dos atos humanos retratados em seus filmes. Se a
diretora não julga tais atos, ou pelo menos se esforça ao máximo para fugir a
este julgamento, se também não discerne as causas de tais atos, resta a ela nos
apresentar mundos com uma aura do desconhecido, com certa dúvida sobre tudo
aquilo que acontece, sobre por que acontece, sobre a bondade ou a maldade do
que acontece. E é aqui, precisamente, que encontramos o cerne do problema no
cinema recente de Coppola: todo este mundo de exotismo nos é vendido (vendido
ao nosso voyeurismo de espectadores) não como um conjunto de experiências e
atos humanos dúbios e intrigantes por sua dubiedade, ou mesmo como um conjunto
de vivências interessantes (mesmo que sem tanta dubiedade) por alguma causa
recôndita, mas como uma espécie de “peça de grife” ou de “anão de circo”. Se
trata, assim, da formação de um voyeurismo no qual o interesse do voyeur pelos
atos humanos inexplicáveis em suas causas (e, portanto e principalmente, em
suas finalidades), está, simplesmente, nesta própria inexplicabilidade. Em
palavras mais concisas: o interesse do voyeur construído por Coppola é
unicamente na futilidade de atos fúteis. E de atos para os quais a diretora e
seu mecanismo agnóstico conferem cada vez mais futilidade.
É interessante o exemplo de “The Bling Ring”, por ser o
mais evidente de todos neste sentido: as atitudes e o espírito daquelas
patricinhas parecem redundar nas formas que o objeto estético em que o filme se
configura adquire: a fotografia de anúncios de perfume, que parece construir um
mundo rosáceo (uma espécie de shopping center rosa schocking), os inúmeros
planos de objetos de grife e da retratação de um mundo de aparências nas redes
sociais computadorizadas que bombardeiam o espectador, tudo isto nos é vendido
como objeto de interesse. E mesmo que Coppola venha a dar um “fim justo” aos
seus ladrõezinhos no fim do filme, isto não impede que toda a obra continue
sendo uma abominação da promoção desta perspectiva voyeurística em relação às
atitudes humanas ali retratadas. Em Coppola, é como se estivéssemos numa
espécie de reality show, onde o principal trunfo é atrair-se o espectador pelo
interesse nas inutilidades da vida alheia.
Com isto, é possível que se diga que o cinema de Coppola,
se redundou formalmente nos espíritos fúteis de seus personagens, também tornou-se
um cinema de filmes fúteis, algumas vezes desprezíveis esteticamente e mesmo
moralmente.
A primeira surpresa, nisto tudo, é ver que seu “cinema de
inutilidades”, com o novo Beguiled, não se torna propriamente uma aberração
mais chocante que a de seu filme anterior, mas um objeto ainda mais passável,
mais estéril, que não suscita quaisquer desejos de reação, de indignação ou de
louvor. É o cinema de um filme-nada.
É interessante perceber a tentativa da diretora em tornar
“O Estranho que Nós Amamos” um filme permeado por tensões, a partir deste ar
“mistérico do mundo” sobre o qual já falamos: há vários momentos que, em
elipse, produzem vácuos nas ações, a fim de lhes dar um ar de desconhecido; há
também certa implantação, teoricamente intrigante, de dada naturalidade em
ações teoricamente mais excepcionais (a sequência que nos apresenta o ato
sexual entre a jovem sedutora e o “estranho que todas amavam”, por exemplo). A
própria apresentação de cada personagem e de seus interesses pessoais dentro do
filme é posta de uma certa maneira como que isolacionista, em que não há
propriamente uma evidente concatenação narrativa que leve, pouco a pouco, à
descoberta, pelo protagonista, dos espíritos de cada uma daquelas mulheres. Seria
como se, de modo abrupto e deslocado, sem uma causa evidente, todas se
apresentassem: “olhe, eu sou assim”.
Curiosamente, todos estes mecanismos são, evidentemente,
motivo de grande fracasso para o filme, que se torna um grande amontoado de
ações sucessivas desprovidas da fortificação de um aporte narrativo que as
pudesse emoldurar para que se potencializassem e adquirissem significado maior
e peso estético mais relevante. Mais uma vez, como em seu filme anterior,
alguém poderá dizer que aqui há um fechamento que impede que a obra se torne um
mero objeto cuja apreciação consiste num voyeurismo afeito às atitudes fúteis:
no fim de “The Beguiled”, e ao longo de sua extensão, ficam evidentes certas
causas de alguns atos perpetrados por aquelas mulheres (o espírito de rancor e
de inveja é bem nítido, por exemplo). Mas nenhuma afirmação neste sentido faria
com que a estética pretensamente mistérica de Coppola pudesse se tornar
coadjuvante, até por ser esta estética quem, por excelência, é responsável pela
regência formal de sua obra. Os mecanismos já aqui apresentados são suficientes
para se discernir a esterilidade e o aspecto propositalmente deslocado das
ações de seus personagens.
Disse eu, há alguns parágrafos atrás, que o fato de “O
Estranho que Nós Amamos” ser um “filme-nada” era uma primeira surpresa sobre
ele. Mas ainda há uma segunda, que trata do que isto representa no panorama
geral da obra de sua diretora.
É muito curioso que uma cineasta que tenha iniciado sua
carreira com “As Virgens Suicidas” e “Encontros e Desencontros” tenha se
tornado justamente a cineasta das ações estéreis. Justamente porque esses seus
grandes filmes de estreia, mesmo que pudessem em alguma instância estar
permeados pelo espírito do que seria a Coppola posterior, eram filmes que
justamente conservavam pequenos atos profundamente significativos, de um peso
imenso, que imprimiam uma espécie de marca indelével no coração dos
espectadores. O abraço final em “Lost in Translation” e o derradeiro gesto de
caridade e sedução de Kristen Dunst, quando pousa sua mão sobre o cinto do
menino mais novo antes da morte coletiva das virgens suicidas, são,
provavelmente, os dois gestos mais sintéticos, os arcabouços gestuais mais
significativos de sentimentos não mensuráveis que o cinema viu nos últimos 20
anos. É surpresa para nós, enfim, que estes momentos de suprema beleza tenham
sido substituídos, na Coppola de hoje, por ações que provocam repulsa ou (e
principalmente) indiferença. E a impressão que nos fica é a de que a cineasta
perdeu, talvez definitivamente, uma capacidade sublime que deve estar contida
em todos os artistas: a capacidade de discernir a beleza das “coisas simples da
vida”.