terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Trader Horn (1931)





Existem alguns diretores, como Ford e Hitchcock, que fizeram um cinema irremediavelmente masculino. Dos problemas do homem. Em Ford este homem é bruto, mas ao mesmo tempo muito honrado, muito sensível. A encarnação, afinal, de John Wayne (muito mais do que de James Stewart ou de Henry Fonda: honrados, mas nada brutos). Em Hitchcock,  há um homem mais urbano, complexado, malicioso (ou às vezes muito santo) e carismático. 

Outros diretores seguiram esta peculiar tendência. Um elo perdido nesta genealogia é a filmografia de aventura do Major W. S. Van Dyke II (transcrevo assim porque ele adorava expor este nome enorme nos créditos iniciais dos filmes). 

No seu caso, há algo mais puro ainda do que em Ford, mais ancestral. Seus protagonistas aventureiros geralmente parecem emigrados das cavernas, mesmo quando são os mais letrados e civilizados. Não à toa a maior persona por ele posta em cena neste âmbito foi Tarzan, em 1932. Em Trader Horn (1931), no entanto, é que parece ter realizado o registro mais preciso da sua visão de masculino. 

No filme, dois white hunters, Horn, um velho aventureiro das savanas, e Peru, um jovem caçador, encontram numa tribo certa jovem branca, que ali fora criada para ser uma espécie de deusa. Daí iniciam uma jornada de resgate, comprando brigas com a selva, com animais e com os perigosos nativos. 

No filme há uma representação brutal dos caçadores. Vários animais são mortos em cena e a sangue frio pelos protagonistas, numa caçada quase real que dura mais ou menos um terço da projeção. Um nativo do local, Rencharo, braço direito de Horn, ajuda estes personagens no intento e curiosamente esta aliança introduz o espectador a um dado importante: ali não há exatamente menos ou mais civilizado, todos são vistos muito frontalmente e com igual dignidade. Sem quaisquer firulas. 

Posteriormente, algumas imagens esclarecerão a questão: as mulheres nativas seminuas, as cenas de imolação de corpos humanos, as canções gritadas e as plumas das vestes, tudo demonstra a beleza e o horror dos africanos. Enquanto isso, a precisão dos tiros proferidos pelos brancos contra os animais é testemunho do seu virtuosismo e da sua insensibilidade. 

Em dado momento, este signo de igualdade torna-se mais brutal: quando já fugidos com a deusa loura, os dois estrangeiros são confrontados pela perseguição de certos leões a uma presa comum. A filmagem dos animais, também bastante cruenta, é longa e contemplativa. Um elogio à força das bestas. Aí há mais uma igualdade, portanto: entre os seres humanos que matam e aqueles animais que dilaceram suas vítimas. O ponto em comum entre as três categorias de seres retratadas, africanos, brancos e animais, é o olhar de Van Dyke, que construiu ali seu bestiário. Para ele, enfim, o homem é uma besta. Muito interessante e bela na sua rudimentaridade, mas ainda assim violenta. 

O pessimismo do diretor, no entanto, não parece irremediável: há no filme duas relações de amor profundas, que apagam quaisquer traços de violência. 

A primeira delas é mais passageira, mesmo que contagiante, entre o jovem Peru e a moça resgatada. Os dois desejam a todo tempo fugir dos perigos e encontrar abrigo para seu amor e assim representam a fugacidade da juventude, mas, ao mesmo tempo, a esperança de um mundo para além da morte, para além da selva. 

A segunda forma, no entanto, é mais definitiva e está na amizade de Horn e Rencharo, o branco e o negro unidos indelevelmente pelo amor à aventura e àquele estranho mundo de perigos do qual não conseguiam se desvencilhar. 

Estas duas formas de amor, juntadas à bestialidade dos atos filmados ao longo da película, se condensam no emocionante final que nos dá uma lição definitiva: por mais que aqueles homens fossem brutos, todos eles não poderiam ser medidos por seus vícios, mas pelo tamanho do seu amor. O próprio narrar dos fatos pode comprovar: numa fuga belicosa contra inimigos, Rencharo se fere e morre nos braços de seu melhor amigo que, apesar de ser quem era, chora uma lágrima e parece não acreditar que perdeu seu único companheiro. O explorador se salva, assim como os dois jovens que, no fim, oferecem a ele que fujam todos os três para um lugar seguro. Horn responde que jamais iria, porque não gostaria de ter uma vida comum, ser casado e envelhecer; que permanecer eterno era estar ali frente ao perigo, ter uma vida inusual, mas descobrir rios por onde nenhum homem havia passado. Apesar de protestarem, os dois amantes pegam um barco para uma cidade próxima, enquanto, na margem, Horn acena para eles, um pouco triste por não compartilhar daquela mesma esperança. Mas volta os olhares para a savana e avista no céu a alma de Rencharo, como a lhe dizer para voltar ao seu ofício, a sua sina de sempre. Ele ensaia um sorriso, se junta a alguns nativos amigos e se embrenha na selva novamente. Fim. 

Não há como dizer que este sanguinário não fosse um grande homem. Assim como, anos depois, num outro filme de Van Dyke, Manhattan Melodrama, não seria possível dizer que o bandido interpretado por Clark Gable não fosse o homem mais honesto do mundo. Por isso, me parece mais correto dizer: o homem de Van Dyke não é somente bestial, mas é algo de tão originário que leva suas crenças até o limite. Não há boas maneiras que sejam remédio para suas decisões. E até por isso são algumas das maiores figuras que o cinema já viu.


In Facebook, 21/02/2021

 

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