sábado, 16 de janeiro de 2021

The Undoing (2020)

                                            


         Ontem terminei de ver uma das minisséries do momento, The Undoing. Igual a muita coisa por aí, tem suas qualidades e seus defeitos, sem representar quase nada de remarcável, exceto por uma tensão que se instaura ao longo da história e que muito menos tem a ver com ela mesma do que com referências externas ao seriado.

          A questão central ali, a questão dramatúrgica, que impulsiona o drama, é a seguinte (e aí vem um spoiler): poderia uma persona como Hugh Grant marretar a cabeça de uma linda mulher por 11 vezes?
Ora, nós, o público, conhecemos Grant há mais de 30 anos. As figuras que ele encarnou até hoje são muito regularmente parecidas: de alta confiabilidade, ternas, muito engraçadas e sempre otimistas. Tão regulares nestes adjetivos que semrpe pensamos que já não são personagens em separado, mas que é a própria personalidade de Grant que molda a vida destas pessoas (algo que só acontece com grandes atores, ao contrário do que se possa pensar).

     É, a priori, portanto, inconcebível que Grant possa ser um assassino brutal em qualquer circunstância, na vida ou na arte. Não que não seja capaz de, teoricamente, representar um assassino. Mas, para isso, seria preciso se desvencilhar da sua persona, ou pelo menos reformulá-la, de modo que este dado brutal seja palatável a todos.

         The Undoing quer apostar numa mera reformulação, para poder explorar também o marketing que as formas mais conhecidas da atuação de Hugh possuem: todos os seus trejeitos tradicionais continuam e inclusive muitas frases do roteiro parecem ter sido feitas sob medida para a comicidade própria dos seus personagens. Há, também, com isso, uma outra tática: a de instigar a audiência a colocar-se como uma espécie de testemunha de defesa de Grant. Pois, já que, mesmo com todas as evidências de sua culpa, continuava o seu personagem a ser mais ou menos como o Hugh que conhecemos, poderíamos sempre duvidar da sua malícia.

       Toda esta publicidade, este marketing em torno da possibilidade nefasta acerca do nosso sempre herói, não passaria de uma grande enganação (como, de fato, não passa) se não houvesse algum diretor eficiente por trás desta história que: 1 - ou preparasse, em paulatinas mudanças climáticas, o público para aceitar a vilania do nosso mocinho romântico; 2 - ou o redimisse, no fim, para que comprovássemos sua idoneidade de sempre.

        Isto não acontece: inventam um final um tanto imbecil para revelar-se a sua culpa, algo deslocado aos supetões, em diversas esferas (de montagem, de direção de atores...), do contexto estético dos outros episódios. Em palavras grossas: uma forçação de barra para colocar goela abaixo do público que nós não podemos confiar em ninguém.

       Pois eu protesto: Hugh Grant é incapaz de matar. Não matou. E não há confissão que me convença. Pelo menos não vinda da boca do mesmo homem que conhecemos, como já dito, há mais de 30 anos. E eis aí o grande pecado do Undoing: achar que nós precisávamos de uma lição moral sobre nossas crenças na ficção. Não sabem que muitas vezes nós, o público, sabemos muito mais da ficção que os ficcionistas.

    Para terminar, isto me lembra uma pequena história ocorrida no Brasil, em que, numa novela, tentaram fazer com que Tony Ramos encarnasse um vilão, no que o público respondeu ferozmente, fazendo com que roteiristas mudassem o rumo de seu personagem. Como neste caso, acho que é justo dizer para que não inventem o impossível: assim como nosso Tony, Hugh Grant é incapaz de matar.






06/12/2020, in Facebook.

Mank (2020)





MANK (2020)

 

            Seis anos separavam Mank do último filme de David Fincher, Garota Exemplar. Era, portanto, uma estreia esperada, uma ótima oportunidade para Fincher provar mais uma vez a excelência que seus filmes recentes têm demonstrado.

            Até por isto, faltam palavras para descrever a decepção desta biografia de Herman J. Mankiewicz. Não só isto, mas também faltam palavras de um sentido mais técnico: é difícil descrever em minúcias críticas quais foram, ponto a ponto, os erros do filme. Há muita coisa nebulosa, desorganizada, claramente precária, mas difícil de ser esmiuçada.

            No entanto, tentemos: me parece que o principal “veneno” que corroeu as estruturas do filme reside numa espécie de “simbólica” muito histriônica e malograda. O filme parece ser todo erigido em torno de uma simbolização da antiga Hollywood e da vida de Mankiewicz que, antes de ser uma boa ficção, é a pior das caricaturas.

            Em primeiro lugar, o uso forçoso de uma fotografia alla Kane ou à moda noir não parece nada orgânico. Há exageros de contraste que se somam a exageros na composição do décor, tudo num intuito claro de forçar, de modo bastante grosseiro, o entendimento do espectador a perceber que “está-se fazendo uma bela homenagem aos clássicos”.

            Em segundo lugar, a montagem parece uma das coisas mais desleixadas que um diretor consagrado poderia fazer. Há alguns cortes abruptos em imagens de memórias e os flashbacks parecem ser desordenados propositalmente, tudo isto  para representar uma memória errática, mas o resultado é desastroso. Essas centelhas das lembranças de Mank, quando montadas, parecem tão lacunares que perdem qualquer força que poderiam ter. Mais uma vez há, aqui, um problema de representação: o comprimento das imagens e a forma de sua disposição parecem ter sido feitos para gerar uma caricatura dos acontecimentos, mas não para expressar o verdadeiro peso que eles tiveram na vida do protagonista. A impressão gerada é a de que os fatos são “jogados” aleatoriamente, preguiçosamente, a nossa vista.

            Um dado presente no filme, no entanto, o salva do fracasso total. Se é verdade que Mank é um filme que, em alguma medida, quer fazer justiça à memória do homem que influenciou terminantemente um dos melhores filmes do mundo, seu único trunfo reside num objeto, criado por Mankiewicz, e que foi decisivo para amarmos tanto assim Citizen Kane: Rosebud. Em Mank não há trenós, mas este objeto de desejo a ser perscrutado e reencontrado pelos espectadores é a vida do próprio Mankiewicz que, sem dúvida, representaria um material interessante até no pior dos roteiros. Sua vida atribulada, de doenças e vícios, sua relação com Welles e sua redenção, na feitura do roteiro de Kane, são episódios caros a todos nós e, mesmo mal representados, continuam atrativos.

            O saldo final é bastante negativo, claro. E mais parece, depois disso, que o verdadeiro interesse de Fincher hoje é Mindhunter, sua bem-sucedida série de TV, na qual ele vêm exercendo, em algumas incursões como diretor de episódios, experimentações eficazes que relembram os melhores momentos de Zodíaco. Que volte para o cinema, mas sem a preguiça que acometeu este último e profundo lapso de sua carreira.

                                 

               

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Melhores do Ano - 2020

 





Melhores Filmes - 2020



    Como é habitual deste blog mesmo em anos pouco produtivos, elaboramos mais uma vez uma listagem dos melhores filmes exibidos neste ano que passou. Com a Pandemia, nosso cineclube está estagnado e nossas publicações de textos adiadas até recomeçarmos novas sessões, mas consideramos importante cumprir esta tradição anual. Apesar da raridade de estreias nesse período nebuloso, pudemos ter acesso a pelo menos umas duas dezenas de bons filmes. Excepcionalmente, consideramos não só as estreias do circuito comercial brasileiro (que ficou meses fechado), mas também todos aqueles filmes que, feitos neste ano, foram disponibilizados seja no cinema, na televisão ou pela web. Avisamos que não conseguimos assistir aos novos filmes de Kiyoshi Kurosawa e Eugène Green (onde foram parar os seus últimos filmes?), por se encontrarem até agora indisponíveis (segundo o que sabemos).
    Sendo assim, seguem as preferência do ano:


          1 - Les Choses qu'On Dit, les Choses qu'On Fait, de Emmanuel Mouret
          2 - Undine, de Christian Petzold
          3 - Le Sel des Larmes, de Philippe Garrel
          4 - O Colírio do Corman me Deixou Doido Demais, de Ivan Cardoso
          5 - A Whisker Away, de Jun'ichi Satô e Tomotaka Shibayama
          6 - Last Letter, de Shunji Iwai
          7 - The Woman who Ran, de Hong Sang-soo
          8 - Eizouken Ni Wa Te Wo Dasu Na, de Masaaki Yuasa
          9 - I'm Really Good, de Hirobumi Watanabe
          10 - Soul, de Peter Docter e Kemp Powers

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Allan Dwan - Uma questão de segundos, por Yuri Ramos



Allan Dwan – Wikipédia, a enciclopédia livre



         Toda arte narrativa é uma questão de tempo. O exercício virtuosístico de todo artista da narrativa é, antes de tudo, a representação certeira de alguns elementos da realidade no seu devido tempo, mais do que em seu devido lugar. É natural que, neste sentido, o papel de um certo sentido revelacional do enredo seja muito importante: as surpresas e as reviravoltas de uma determinada trama são inegavelmente, espécies de clímaces que dão sinuosidade ao tortuoso caminho do drama narrado e ao mesmo tempo ressignificam todos os elementos nele presentes: não só a história como um todo ganha novas tonalidades com estas revelações, mas o sentido dos mais diversos signos que nela estão presentes podem, neste processo, ser modificados e ganhar maior completude.

            O papel desta sistemática revelacional é bastante complexo, certamente: quantas formas haveria de desvelar ou de ocultar momentaneamente os elementos narrativos, a fim de que somente surgissem na devida hora? Como medir o limiar, por exemplo, da aplicação certeira de figuras de linguagem que pudessem levar a cabo tudo isto? Qual o lugar da elipses, das metáforas? Por certo, seriam questões originantes de uma discussão inspiradora, mas bastante longa, à qual aqui não pretendemos nos deter.

            Queremos, no entanto, pensar um pouco acerca de um pequeno exemplo, certamente inusual, mas igualmente bem-sucedido, de grande virtuosismo narrativo no que tange a esta seara das revelações na arte. Um pequeno filme de Allan Dwan: “A Sereia dos Mares do Sul”. Estrelada por Virginia Mayo no papel de uma mulher ambiciosa e sedutora,  a produção tem um argumento relativamente simples: uma mulher (Mayo) e seu amante resolvem se unir a um antigo conhecido para desvendar um mistério vindo do mar junto a um náufrago por ela resgatado, que trazia consigo uma pérola negra valiosíssima, teoricamente retirada de um tesouro numa ilha perdida.

            A esta premissa inicial, no entanto, se ajuntam profusamente detalhes e mais detalhes: de pronto, o novo comparsa do casal de caçadores aceita a empreitada. Mas desde o início parece estar mais interessado na diabólica loira comprometida com seu colega do que com as pérolas escondidas. Tudo isto se passa num pequeno barco e, em questão de instantes, a mesma Mayo que estava ao lado de seu amante num cômodo da embarcação está a beijar, naquele mesmo lugar esguio, o comparsa nela interessado. De modo igualmente ligeiro, seu namorado avista tudo, os dois homens se atracam, tiram sangue um do outro, mas são interrompidos pelo anúncio: “Terra à vista”. Acabam com a briga imediatamente, se perdoam e vão trabalhar para conseguirem dar cabo àquela aventura de um milhão de dólares.

            Há duas coisas muito curiosas nesse preâmbulo: primeiro, a instauração do triângulo amoroso de forma muito estranha. No fundo, há uma certa aceitação daquela condição, em vista de “um caso mais sério” (pelas pérolas, vale até aceitar que sua mulher dê alguns beijos em seu colega). Segundo: a rapidez inusual destes acontecimentos. Não haveria exagero nenhum em dizer que alguns dos episódios que acabei de narrar duram poucos segundos. Questões graves, revelações fortes, aparecem e se dissolvem a passos de maratona. E, por isto, ficamos um tanto atônitos ou, mais ainda, um pouco fascinados com um certo toque fantasioso que há nesta condução do enredo: tudo o que acontece pode, magicamente, ser substituído por outro fato ou pode se tornar desinteressante muito rapidamente. Em uma questão de segundos.

            E será mais ou menos neste mesmo ritmo que o filme caminhará até o seu fim: numa seara intrincada de problemas e de soluções que surgem e desaparecem numa revoada incessante de apenas 82 minutos de duração. Poderíamos tentar, até por isso, falar de “fluidez narrativa” para aquilo que Dwan instaura em sua obra. E isto poderia ser admissível, mas desde que explicado em termos muito restritos. Quando tratamos daquilo que costumamos chamar “um enredo fluido”, queremos nos referir a um conjunto encadeado de acontecimentos que se conectam de modo que o vínculo causal entre um e outro episódio se torne algo tão natural que não seja muito percebido. Ao mesmo tempo, quando nos referimos a este tipo de enredo, também queremos representar aquelas histórias em que este caráter natural da causalidade narrativa é gerado sempre pela virtuosística alocação dos episódios em seu tempo certo: por tudo ocorrer em seu devido tempo, numa estrita economia, não nos entediamos ou percebemos o tempo passar. O enredo é apreendido, assim, por nós num único e contínuo fluxo.

            Isto, obviamente, se aplica só em partes à “Sereia dos Mares do Sul”. Aqui, apesar de haver uma certa fluidez inexplicável, mágica, dos acontecimentos, o seu vínculo causal não é nada natural. Mas, daí, viria o questionamento: se não é nada natural, porque é que o aceitamos? Qual o limite entre o sem sentido e o fantasioso que faz com que nos encantemos com esta história?

            Me parece que há uma outra naturalidade (aí, sim) que explique isto: Dwan conduz uma história de acontecimentos muito fortes, remarcáveis, e que são introjetados pelos caráteres de seus personagens com absoluta seriedade, mesmo que muitas destas problemáticas durem pouco. Há, em todos aqueles que se colocam nesta revoada de desventuras, uma entrega profunda a todos estes sentimentos confusos. Há neles, por isso, uma grande credibilidade. Ou, pelo menos, a credibilidade de que situações tão ambivalentes e mutáveis possam ser bastante humanas. Este sentido narrativo é vetorizado principalmente pelo fio condutor de toda a história: a protagonista interpretada por Mayo. Ela é, ao mesmo tempo, a mulher que faria tudo para ser rica com as pérolas negras e aquela que se sacrifica de modo maternal quando um nativo da ilha secreta se acidenta ao cair de uma árvore. É ela quem zomba de Deus ao se fantasiar de missionária puritana para convencer os nativos a deixá-la ficar na ilha, mas é também ela que, num átimo, é capaz de transformar-se, da pecadora, na pessoa mais crente daquelas redondezas (a única cujas preces são atendidas). É por isso, por seu caráter tão humano, exposto na mesma cadência exótica do filme, que talvez a narrativa se torne mais palatável para todos nós, enfim.

             Mas não pode ser somente por isso. Se este é o fio condutor que nos faz compreender a direção pela qual esta história caminha, há outros artifícios que fazem com que ela dê-se a ver de modo cada vez mais claro para nós. Parece que não só Mayo, mas todos os personagens da trama são apresentados como pessoas que lutam a ferro e fogo por todos os seus sonhos, mesmo que eles sejam os mais intempestivos e contraditórios. Essa contradição interna a todos eles, psicológica mesmo, é uma instabilidade constante que, por ser generalizada, dá credibilidade ao fato de que a obra como um todo possa ser conduzida nesta mesma instabilidade sem que consideremos isto um defeito, mas a consequência dos entraves entre os desejos de diversas personalidades indomáveis (mas não caprichosas).

            Além disto, a própria representação cênica que Dwan dá aos fatos que envolvem a vida destas pessoas parece dar a estas abruptas mudanças um caráter factível ou artisticamente apreciável. Os cenários claustrofóbicos, principalmente nas cenas filmadas no barco, não dão conta de “dar espaço” para que cada coisa aconteça de cada vez, para que cada personagem reaja separadamente àquilo que a cena lhe impõe: muitas vezes os espectadores se veem confrontados com imagens dúbias, em que os atores em cena parecem estar cada um envolto num drama pessoal bastante alheio ao outro, mesmo que ambos estejam assustadoramente próximos no espaço cênico, algo que recorda bastante alguns esquemas de encenação teatral. Aliás, é também por essa claustrofobia cênica que a ópera e o teatro prosaico são tão famosos por suas mudanças contextuais tão abruptas. Aqui não poderia ser diferente: há uma economia enorme para tudo: pouco tempo e pouco espaço. Se a duração da projeção é mais curta que o habitual, o poder de suas imagens se condensa nesses cubículos, em curtos e certeiros gestos: desde o sorriso luxurioso da protagonista loura num close inicial, logo que é vista pelo comparsa que a ama, até a curta prece feita pela mesma personagem perto do fim do filme, quando ela, com os olhos brilhando, agora num plano mais médio, mira o céu e clama para que todas as desventuras que até ali haviam ocorrido se dissipem. Essas imagens potentes, condensadas e magistralmente dirigidas, por serem capazes de retirar um arcabouço imenso de significados de pequenos gestos corporais ou de pequenas posições cênicas, são mais um voto de credibilidade nesta obra dwaniana.

Enfim: desta vez não aceitamos a fluidez dos ocasos por ser natural, mas por ser arrebatadora. É este o senso fantástico de “A Sereia dos Mares do Sul”. E agora voltamos ao nosso ponto inicial: o virtuosismo da arte narrativa, aquilo que nos faz admirá-la, é uma questão de tempo: saber alocar os acontecimentos num conjunto tão coeso que tudo seja transmitido ao espectador num fluxo contínuo, porque tudo lhe foi dito exatamente quando se deveria dizer. É óbvio que esta arte, a arte dos contadores de histórias, é um exercício paulatino e paciente da sabedoria que oculta e desvela, que dilata e encurta, na cadência devida. Mas nos prova Dwan que nem sempre este ritmo deve ser tão quieto, principalmente quando os dramas humanos são tão indômitos. Para ele, a arte de narrar era mais que uma questão de (pouco) tempo: era uma questão de segundos.
           
               

domingo, 22 de dezembro de 2019

Hu Sang - Filmes disponíveis






          Hu Sang, cineasta de grande sucesso na China durante o período comunista e antes deste, admirado por alguns críticos franceses, como Jean Tulard, é, hoje, um esquecido como muitos daqueles que permanecem à sombra do sucesso hegemônico dos neo-realistas asiáticos. Nas palavras de Tulard, ele foi "le plus esthète des nouveaux realisateurs chinois, surtout connu pour 'Les amours de Liang Chan-Po et de Tchou Ying-Tai', aux images raffinées, qui depassaient le cadre de I'opera pour denoncer les regies obscurantistes de l'ancienne societé. II est aussi capable d'emouvoir avec 'Le sacrifice du nouvel An', sacrifice dont se trouve exclue une veuve qui s'est remariée, Avec 'L'aventure extraordinaire d'un magicien', i1 a aborde pour la première fois en Chine la stéréoscopie". Faremos aqui, em tempo oportuno, uma revisão comentada de sua carreira; por ora, a critério de catalogação, segue abaixo uma lista com alguns de seus filmes que estão disponíveis para visualização on-line:


Love without End (1947)  


Long Live Missus (1947)


A Essência da Ópera Yue (1949)
youtube.com/watch?v=tZ70IYGdyzs


Miserable at Middle Age (1949)


A Aventura de um Mágico (1962)


Os Dois (1979)


Meia-noite (1981)


Romance in Philately (1984)


segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Descoberta de Guru Dutt, por Charles Tesson


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DESCOBERTA DE GURU DUTT 


Há apenas um nome dentro do cinema indiano capaz de ultrapassar a velha oposição entre filmes comerciais e filmes independentes. No início dos anos 50 (e mesmo dos anos 30 até a atualidade), existiram alguns cineastas que, conciliando um sistema econômico e estético, realizaram um verdadeiro trabalho de mise-en-scène. Esses cineastas ainda não foram descobertos e Guru Dutt é um deles. Este contribuiu para o cinema musical indiano, cantado e dançado, com uma grande qualidade de execução e um extremo cuidado. Mais do que um refinado esteta, é um cineasta suntuoso e decadente. Ele não conta histórias ou propõe temas, tem apenas obsessões que o torturam e nos oferece delírios megalomaníacos (a perseguição do fracasso e seu correspondente fantasma na celebridade post morum). Seus filmes não são autobiográficos nem premonitórios. É antes a sua vida que se assemelha progressivamente a seus filmes. O destino do Guru Dutt é inventar histórias para vivê-las em seguida. Ator e diretor, ele também se converteu (tragicamente) em um personagem de seus filmes. 

A vida de Guru Dutt foi um melodrama sombrio. Ele nasceu em 1925 e muito jovem entrou na Academia de Arte Uday Shankar, onde ensinou dança. Aos 20 anos, ele se envolveu com os estúdios da empresa Prabhar, em Puna. Dirigiu seu primeiro filme aos 26 anos no contexto do cinema comercial hindu e fundou sua própria produtora (a Guru Dutt Films Private Limited) e começou a interpretar seus filmes. Autor completo. Um caso único dentro do sistema. Ele se cerca de fiéis colaboradores: o roteirista Abrar Alvi, o músico S. D. Burman, o operador V. K. Murthy, sem esquecer o ator Johnny Walker (seu número musical em Sede Eterna, no qual ele elogia as vantagens de uma loção capilar é inesquecível). A esposa de Dutt, Geeta Roy, famosa cantora, emprestará sua voz a todas as músicas de seus filmes. Guru Dutt se arruinou em 1959 com seu sétimo filme, Flores de Papel. Em 1962, ele produziu e interpretou Sahib bibi aur ghuúzm, mas, ressentido com o fracasso de seu filme anterior, preferiu confiar a mise-en-scène ao roteirista. Guru Dutt, em seguida, continua sua carreira de ator no cinema comercial, até cometer suicídio em 1964, com 39 anos de idade. 

Os três filmes mais conhecidos de Guru Dutt (Sede Eterna, Flores de Papel e Baharen Phir Bhi Aayengi) têm um ponto em comum: Waheeda Rehman. Atriz e estrela fabricada peça por peça por Dutt. O outro ponto em comum é a descoberta imediata de que um cineasta como Dutt só poderia realmente se expressar dentro de uma economia de estúdio: ele precisa de decorações gigantescas (colunatas de estuque...), estrelas, luzes que explorem ou escondam os contornos de seu rosto, filtros que, sorrateiramente, auxiliem o olhar para a câmera. Dutt trabalha por fragmentos e fetiches: entre o primeiro plano de um rosto e todo o plano de um corpo, a luz não realiza raccord jamais. Destes três filmes, Sede Eterna é sem dúvida o mais belo e coerente. É o retrato do artista como um poeta amaldiçoado: Vijay (Guru Dutt), autor de canções, se encontra dividido entre uma prostituta (Waheeda Rehman) e uma velha amiga de escola casada com um editor rico que ignora seu talento. Quando todos o consideram morto, o editor considera apropriado publicar seu trabalho e o poeta se torna uma celebridade. Na última sequência, comovedor fragmento de antologia, o poeta retorna a um teatro no qual se celebra o primeiro aniversário de sua morte. Ele então grita seu ódio para a mesquinhez deste mundo sórdido. Ele canta também (em uma declaração com voz sublime) antes que a multidão o tome por impostor e o expulse. Quando parece que as pessoas vão reconhecê-lo, ele se afasta com desdém. Como um personagem de um Devotional Film, acompanhado pela mulher amada (Waheeta Rehman), alcançava esferas artísticas mais elevadas. 

Flores de papel é igualmente de um narcisismo sombrio. Traça a vida de um cineasta interpretado por Guru Dutt. Acompanhamos o auge de seu sucesso, momento em que conhece uma atriz (Waheeda Rehman: um episódio diretamente inspirado em sua vida), até o seu fracasso e seu progressivo afastamento dos estúdios da companhia. O início do filme (o velho que entra no estúdio vazio e se lembra de sua carreira) e o final (sua morte) são sublimes. Flores de papel não é tanto uma ilustração de A Star is Born como a atualização da angústia de saber que a estrela modelada por um cineasta pode continuar a ser sem ele. A esse respeito, deve-se acrescentar que o conjunto Dutt/Rehman, tão famoso na Índia quanto o casal Sternberg/Marlene, levará a cabo esse roteiro de fidelidade e abandono até o fim. Sabemos que, após a morte de Guru Dutt, Waheeda Rehman interrompeu abruptamente sua carreira de atriz. Nesse sentido, o momento mais bonito do filme é quando o cineasta fracassado retorna ao estúdio e, anonimamente, é empregado como figurante para encontrar sua estrela face a face e passar no teste de seu olhar. 

Como regra geral, todos os planos que Guru Dutt interpreta são muito cuidadosos: se enquadra à Welles, adota posições inverossímeis. O resto deixa algo a desejar. A partir do momento em que a música começa, a câmera se torna irreconhecível e o filme atinge uma beleza que corta a respiração. Em um único plano, a face de uma estrela que atrai toda a luz se coloca bruscamente contraluz. A cena em que o cineasta entra no estúdio e diz a sua atriz que ele não pode amá-la porque é casado é magnífica. Para mantê-lo, ela declara seu amor e canta. Naquele momento, ouvimos a voz de Geeta Roy, a esposa de Guru Dutt, que dubla as canções da protagonista. Nunca a dublagem, o encontro entre uma voz diferente e uma imagem diferente, capturou de tal forma a situação fictícia que se desenvolve. O último filme produzido por Dutt (Baharen Phir Bhi Aayengi) está longe de ser a obra-prima de que Micciollo fala. Acusa sobretudo as limitações do filme anterior. O excesso de delírio se obscurece às vezes em uma miseen-scène pouco inventiva, sabiamente acadêmica, que reduz consideravelmente o conteúdo de seu cinema. Dutt apenas dirigiu as cenas musicais deste filme (que são muito bonitas). O remake do filme, no entanto, é importante. Não é nada mais, nada menos que a versão comercial de A sala de música, de Satyajit Ray: o declínio de uma casa e da aristocracia. O filme retoma a construção de Flores de Papel e Dutt faz o papel de testemunha servil do declínio. O dono da casa gasta seu tempo e dinheiro com as bailarinas da corte. Sua esposa, para reconquistá-lo, concorda em se encerrar juntamente com ele em sua casa até a morte chegar. Meena Kumari, outra figura mítica do cinema indiano, porque teve o mesmo destino de seu personagem, interpreta a mulher. Ao ver o filme, sonhamos como teria sido se não tivéssemos na direção a sombra de um Dutt diminuído por seus fracassos e pelo fato de que seu trabalho, considerado demasiado comercial, não foi jamais tomado a sério pela crítica. Entretanto, sem nenhuma dúvida, se trata de um cineasta eminentemente atrativo e com talento. Mergulha o espectador em uma vertigem insensata em que a vida, o ator e o personagem estão perpetuamente implicados. Na qual cada vez o espectador sai subjugado e seduzido. 


 Charles Tesson, «Découvrons Guru Dutt e Ritwik Ghatak! », Cahiers du cinéma, nº 343, janeiro de 1983. * Tradução: Beatriz Saar

Good-bye, my Lady (1956) - por Luís Miguel Oliveira



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Goodbye, My Lady
de William A. Wellman


"Goodbye, My Lady" foi o antepenúltimo filme realizado por William A. Wellman, que depois de uma carreira iniciada nos anos 1920, e com vários momentos gloriosos na primeira linha de Hollywood, se aprestava a fechar a obra no tom discreto e quase menor que, no fundo, foi sempre o seu, mesmo nas produções luxuosas dos seus momentos de maior aclamação - sempre preferiu o pragmatismo à retórica, a sugestão da sensibilidade à sensibilidade gritada, a secura descritiva ao exacerbamento emocional.

Num certo sentido, e pela conjunção de características acima descritas, talvez não tenha havido cineasta americano da sua geração tão avesso ao melodrama como Wellman, certamente o género menos tocado na sua multifacetada e eclética obra, onde predominam os géneros tidos como "masculinos", tais como o filme de guerra ou o western, brutos, secos e contidos, mesmo quando declinados no "feminino" (o caso do extraordinário "Westward the Women", uma das primeiras abordagens expressas ao lugar da mulher no "western", quer o "western" do cinema quer o "western" da História). E no entanto...

E no entanto, Wellman tinha guardado, para os momentos finais da sua obra, um dos filmes mais comoventes alguma vez feitos. Em "Goodbye, My Lady", como em todos os filmes de "crianças e cães", há lágrimas de sobra para qualquer espectador que não tenha ainda os órgãos vitais empedernidos. E, sendo o supra-sumo do filme de "crianças e cães", as lágrimas aumentam exponencialmente. O que é genial? Que Wellman faça um tal filme sem abdicar dos seus princípios habituais - pragmatismo, secura, horror à retórica - e sem arrancar uma só lágrima a partir dalgum golpe baixo (aquele género de "golpes baixos" que são, ou viriam a ser, característicos da generalidade dos filmes de "crianças e cães").

Notar-se-á que, mais uma vez, Goodbye, My Lady é um filme conjugado no masculino, de onde as mulheres estão ausentes, e assente na relação entre um velhote (Walter Brennan, mais uma vez provando que foi o maior actor de cinema de todos os tempos) e um miúdo órfão (Brandon deWilde). A Lady do título é um cão, mas como não ver nesse nome (e nesse título) uma chave ou uma indicação para o verdadeiro tema do filme, que seria, muito simplesmente, e muito adequadamente para um garoto que já ficou sem mãe quando o filme começa, uma aprendizagem da perda e, consequentemente, uma aprendizagem da vida, uma entrada na vida, uma entrada naquele ponto da vida a que se chama "maturidade" e que consiste, basicamente, em ser-se confrontado com escolhas e em assumir a responsabilidade perante as escolhas que se fazem.

Assim sendo, "Goodbye My Lady", como todos os grandes filmes sobre a infância, é um filme sobre o seu fim, é um filme sobre a despedida de um tempo e de uma condição, e sobre as boas vindas, sempre com o gosto amargo das coisas inevitáveis, ao tempo em que um garotinho se transforma num homenzinho. Quando ele diz "goodbye" à sua "lady", e a vemos ir embora, engaiolada pelos seus donos legítimos, ninguém resiste, por mais enxuta que seja a forma como Wellman o filme (ou precisamente por essa forma ser tão enxuta): em raccourci, cada espectador revê o momento em que disse "goodbye" à sua "lady", revê a criança que foi e o momento em que deixou de a ser. Nos pântanos do Mississippi, Wellman arrancou, como todos os grandes autores de todas as eras e todas as disciplinas, uma narrativa universal. Esse é o seu poder, retomado a cada nova projecção. Goodbye, my Lady.



Luís Miguel Oliveira