terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Shadows (2018)


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          Há anos Zhang Yimou, que em algum momento se consolidou como promessa do “cinema de culto” asiático, goza de uma enorme má fama. Não absoluta, unânime, mas uma forte má fama que corrói todos os possíveis créditos que poderia ter em alguns ambientes da crítica cinematográfica. Seus filmes são, para alguns, motivo decerta zombaria e chegam a classificá-lo de “carnavalesco”. Outro, mais benevolentes, dizem que é falso, artificial (como se assim não fosse toda a arte).

              E, de fato, não estão completamente desprovidas de razão estas críticas.

            Há algum tempo, neste mesmo veículo, escrevi sobre os problemas da caricaturalização do décor, quando por ocasião de um comentário sobre “A Forma da Água”, com suas infindáveis paredes verdes, monstros verdes, nascidos de lagos verdes. Este é um vício, de fato, também presente em Yimou e que poderia justificar sua fama: na massificação de blocos coloridos sempre aparentados, feitos para salientar a importância de alguns elementos centrais ao enredo (como no caso da flor dourada que faz o filme sobre sua maldição ser inteiramente amarelo-ouro), há algo de simplista, caricatural e, portanto, para alguns, carnavalesco. No entanto, aparentam muito mais um capricho formal que uma inconsciente desmesura no décor, o desejo de realizar uma obra sob certas regras inventadas como mero joguete exibicionista (como seria, por exemplo, o fetiche em realizar um “filme dourado”).

            Em seu último trabalho, Shadows, Yimou importa mais uma vez esta perspectiva um tanto inconsequente ao propositar um filme colorido tão monocromático que aparenta o preto-e-branco, numa redundância: se o filme trata de sombras, façamos um filme cor-de-sombra! Mais uma vez, isto é um problema, mas nada de mortal, assim como não havia sido no ótimo A Maldição da Flor Dourada. Futilidade, é certo, mas algumas futilidades são, por natureza, detalhes.

            Se falta o enigma e a sutileza aos tons de cinza, há certamente uma complexidade maior nas demais formas das quais o diretor se vale para comandar por inteiro sua obra não somente como um exercício rígido de variação de cores, mas como um organismo conciso e coerente de interligações sutis que formam duplos a se relacionarem do modo como as sombras relacionam-se com os corpos. Não é à toa que, do começo ao fim, aparecem o Yin e o Yang, luz e trevas, bem e mal que se complementam.

            Os exemplos desta ambivalência são muitos: os próprios substitutos do títulos, as “sombras” dos reis que precisavam de substitutos para se protegerem contra eventuais ataques as suas vidas; a ambivalência de caráter do rei-vilão e do insurgente que deseja retirá-lo do trono, dois lados da mesma moeda; a pureza das vestes brancas da rainha e a corruptibilidade do seu amado, o cavaleiro negro.

            No entanto um deles permanece o mais complexo, o mais importante, aquele que desestabiliza o caráter quase cerebral deste wuxia: antes de o filme começar em efetivo, um intertítulo nos anuncia que “a esposa do rei está prestes a tomar a decisão mais difícil de sua vida”; introduz-se o plano da rainha a olhar para uma fresta da porta do palácio, terrificada; um corte abrupto interrompe o plano e a história é contada independentemente dele. Somente no fim reaparecerá a circunstância que o envolve. Torna-se ele, também, o último plano do filme. A tal decisão primordial permanece misteriosa. Ela é fruto da perplexidade daquela mulher diante das desgraças que o mundo lhe trouxe, diante da desconfiança em relação a todos os homens que mais proximamente a cercavam: todos maus, mesmo que não por completo, porque todos são dignos de uma parte do seu amor. É o mistério da iniquidade, cuja existência não há maniqueísmo que explique ou que negue. E é a volubilidade da paixão que inebria o coração dos inocentes.

            Com isso, caem por terra os joguetes dos quais Yimou poderia se servir para seus caprichos e o labirinto de conexões inabalavelmente coerentes se dissolve pelo terror do drama, numa espécie de constatação penitente da complexidade do mundo. “Shadows”, um pretenso edifício racional e geométrico, é balizado, no primeiro e no último planos (literalmente), pelo princípio da dúvida. São estas duas bases, alfa e ômega, que lhe dão sentido, acabamento e beleza.

            Há, ainda, outras glórias do filme a serem realçadas: o uso do slow motion que recorda os áureos tempos de Chang Cheh a louvar o virtuosismo da violência e do heroísmo martírico e o manuseio comedido nos efeitos especiais (coisa rara no cinema chinês atual, que fez até Tsui Hark se render às cores aberrantes de Stephen Chow). Mas isto, sim, são detalhes, e seria capricho esperar que fossem eles os responsáveis pelo êxito do filme. O que há de mais substancial em “Shadows” é esta beleza da dúvida, o virtuosismo por traz das sinuosidades do incerto. E a imensidão, não daquilo que se viu, mas do que permaneceu envolto pelas sombras.

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