Um obituário
O texto
que segue é um dos dois prefácios (o outro é de autoria do crítico chinês Sek
Kei) de um livro intitulado Chang Cheh: A Memoir, um título que, à época
(2002/2003), deveria ter um sentido um tanto duplo: se, por um lado, o livro conta
com registros de memórias biográficas de Chang, acabou, por outro, sendo um
memorial em honra ao falecimento do diretor, que havia ocorrido pouco antes de
seu lançamento.
O
prefácio é de autoria de John Woo, ex-assistente de direção de Chang. E, dadas
as circunstâncias do momento e a proximidade de Woo com o falecido/homenageado,
nada é mais justo do que lê-lo, antes de tudo, como um obituário.
O texto
está originalmente publicado no livro em questão e, disponível a todos, em
inglês e chinês no site do Hong Kong Film Archive.
***
Relembrando Cheh Chang, por John Woo
Cheh
Chang nasceu em Zhejiang e isso sempre nos divertia, porque ele falava
cantonês. A equipe, o elenco e os dublês riam tanto que chegavam a chorar. Por
exemplo: nós ouvíamos tau sik (escondendo um pedaço de comida), quando na
verdade ele queria dizer tau jaap (ataque surpresa). E essa é só uma das muitas
coisas que descobrimos sobre ele. Cheh Chang não se ofendia nem um pouco com
isso e ria conosco. Era como um ancião que sorria indulgentemente diante de
crianças malcriadas que lhe arranjavam problemas. Apesar disso, sempre que ele
nos dizia como um plano deveria ser filmado, prestávamos muita atenção, dando o
máximo de nós mesmos para realizarmos, da melhor forma possível, os nossos
deveres, porque o diretor Cheh Chang tinha de nós o máximo respeito. Cada plano
que ele idealizava era, para nós, um desafio, um processo de aprendizado e
qualquer contribuição num filme de Cheh Chang, por menor que fosse, era, para
nós, um grande orgulho. E se alguém fazia algo errado, ele não lhe dava
punições, mas conselhos e incentivos. Ele sempre via nas pessoas as suas
qualidades e não seus erros. A indústria cinematográfica é um mundo
competitivo, onde não nos sentimos seguros. Há pressões que surgem por todo
lado e o medo de errar nos põe sempre para baixo. E, mesmo assim, Cheh Chang
nos fez sentir que fazer filmes poderia ser algo divertido, espirituoso, às
vezes poético; algo dignificante. Nós sentíamos que o estúdio era nossa casa.
Embora
tivesse se envolvido, durante um breve período da sua juventude, na política,
Cheh Chang jamais carregou isso para seus filmes ou para sua vida pessoal.
Havia nele o
romantismo
de um artista e a integridade de um intelectual, ao mesmo tempo em que, na sua
personalidade, havia valores muito bem definidos. Modesto, tolerante e de mente
aberta, ele não tinha a agressividade e a manipulação que constituem um
político. Cheh Chang era um homem de poucas palavras e um homem de palavra, que
demonstrou sua eloquência em seus filmes e escritos. A fluidez estrutural de
suas imagens no cinema e daquilo que escreveu, além de cativante, exibe seu
verdadeiro jeito de ser. Seus filmes, caracterizados pela busca de ideais
elevados, jamais alcançados à custa de emoções corriqueiras, exaltaram as artes
marciais, assim como o espírito de nobreza. Grandioso no estilo e magnífico na
apresentação, seus filmes levam o público a uma catarse extasiante.
Cheh
Chang podia não ter a língua afiada dos políticos, mas certamente um olho afiado
para os talentos, sempre conservando um grande coração e os braços abertos para
com eles. Seus colaboradores de longa data, incluindo renomados roteiristas
como Ni Kuang e Chiu Kang-chien, diretores de artes marciais como Tong Kai e
Lau Kar-leung, o diretor de fotografia Miyaki Yukio (mais conhecido como Gong
Muduo) e todo o resto de sua equipe eram a elite da indústria cinematográfica.
Todos eles tiveram um papel importante para o sucesso dos filmes de Cheh Chang.
A partir dos seus trabalhos, nós, que aprendíamos o ofício da direção com
Chang, pudemos também perceber a importância dos roteiristas e por que um
roteiro é a alma de um filme. Numa mistura entre o espírito, a beleza e a
habilidade do wuxia, Tong Kai e Lau Kar-leung reinventaram a coreografia de
artes marciais, dando perfeita expressão às inclinações românticas de Chang.
Cheh
Chang tinha o toque de Midas em suas mãos quando descobria um novo astro. Ele
tinha ótimos olhos para reconhecer o potencial de um ator e seu faro nunca
falhava. Ele descobriu e ajudou no crescimento de uma verdadeira galáxia de
estrelas e muitas delas se tornaram ídolos do cinema. Ele as conduzia e as
fazia crescer de modo sábio, entusiasmado, nutrindo por elas uma admiração
mútua. Baseado no potencial, no temperamento e no apelo pessoal de cada ator,
ele confeccionava cada personagem com uma personalidade única. Jimmy Wang Yu,
Lo Lieh, John (David) Chiang, Ti Lung, Wang Chung, Chan Koon-tai, Alexander Fu
Sheng, Danny Lee, Kuo Chui e tantos outros se mostraram como estrelas
carismáticas e com um estilo único. Cheh Cheng não foi só um “fazedor de
estrelas”: ele podia extrair o melhor de cada ator. Eles viam nele um tutor.
Nos
primórdios, ter mais idade contava muito na indústria cinematográfica e, por
isso, os jovens costumavam ser um pouco desprezados. Cheh Chang, ao contrário,
dava aos novatos uma chance. A juventude lhe despertava muita admiração: ele
podia sentir sua vibração e sua criatividade. Os heróis de seus filmes são,
invariavelmente, homens jovens com um ar romântico que demonstram a graça dos
cavaleiros errantes, sempre colocando a retidão e o cavalheirismo à frente de
tudo e buscando confiança ao encarar os desafios. Antes de trabalhar para
Chang, eu era um jovem tímido e reservado. Sem muita autoconfiança, não dava
muita voz às minhas próprias ideias e opiniões. Depois de ver uma série de seus
filmes, como One-armed Swordsman (1967), The Golden Swallow (1968), The
Wandering Swordsman (1970) e Vengeance! (1970), criei dentro de mim o
sentimento de que podia possuir o mesmo tipo de romantismo juvenil que estava
contido nos heróis destes filmes. Quando eu me sentia perdido, duvidoso das
minhas habilidades e do meu futuro, Chang me encorajava a focar no ofício de
diretor, o que, à época, era um sonho impossível para um iniciante. Nós nunca
nos falamos muito, mas, sabendo do meu potencial, ele me deu direcionamentos e
me ajudou a elevar minha autoconfiança e minha autoestima. Olhando para trás,
Cheh Chang não influenciou só a minha maneira de dirigir, mas também o meu
próprio modo de viver. E a isto eu sou eternamente grato.
Os filmes
de Cheh Chang são jovens no espírito. Ele acreditava em si mesmo e persistia em
seus sonhos e sua mente criativa, apesar da idade, jamais envelheceu. Seu
pensamento era extremamente lúcido e ele nunca deixou de escrever ou de ajudar
os recém-chegados na área do cinema. Na verdade, ele nunca deixou de se
preocupar com aqueles atores e técnicos que viu crescer e amou como seus
próprios filhos. Seu amor irrestrito era inspirador. Cheh Chang sempre foi um
pioneiro. E, do início dos anos 1960 até o fim dos 1980, ele, trazendo avanço
atrás de avanço, renovou clichês antigos e desgastados com perspectivas
modernas e novas técnicas cinematográficas. Ele inventou o wuxia yanggang e a
sua série de wuxias românticos não só criou uma tendência, inaugurando, na
verdade, uma “uma nova escola do movimento wuxia”. A cinética fluida de suas
coreografias de artes marciais influenciaram cinemas locais e estrangeiros,
dando destaque internacional ao cinema de Hong Kong. A produção local, desde
então, passou a ser vista com novos olhos e com respeito. Sempre seremos gratos
ao seu trabalho e ao seu legado por tudo isso.
A
contribuição de Cheh Chang para o cinema de Hong Kong e para o da China é, há
muito, reconhecida e sua influência, é, ainda nos dias de hoje, presente. Nós o
admiramos por seu estilo cinematográfico, mas também por sua integridade, e
somos gratos pelo seu legado que, agora, faz parte integrante de nossa memória
e nunca deixará de nos inspirar. Cheh Chang é, por definição, um mestre de
nosso tempo.
Setembro
de 2002, Los Angeles
Tradução:
Yuri Ramos