sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Top 10 - Os melhores filmes de 2021

 





           Mais um ano pouco produtivo para o nosso blog se passa: poucos textos, poucas traduções e nosso cineclube fechado mais uma vez propiciaram este bem pequeno arquivo de postagens do ano de 2021. No entanto, nossa lista de melhores do ano não irá faltar. 

          Mais uma vez, como em 2020, incluí não somente os filmes estreados em circuito brasileiro (o que era nosso habitual até 2019), mas todos os filmes vistos que foram estreados neste ano, seja nos cinemas, por streaming, sinal de fumaça ou outros meios inabituais. Incluí também como no ano passado produções em capítulos (séries, minisséries, etc.), considerando como "melhores filmes do ano" as melhores produções artísticas cinematográficas de 2021, independentemente do formato.

          Posso dizer que vi praticamente todos os filmes que considero relevantes neste ano, exceto um: Petite Solange, de Axelle Ropert. Creio que seria uma provável presença na lista, mas não foi exibido em festivais no Brasil, provavelmente nunca estreará aqui em circuito comercial e tampouco fui capaz de encontrá-lo para download na internet. Fica então registrada a ressalva de que não incluí este último filme de Ropert simplesmente por não tê-lo visto.

          2021 foi um ano curioso, onde os bons autores do nosso cinema produziram filmes problemáticos. Leos Carax, Paul Verhoeven e Hong Sang-soo estrearam filmes que vão do inaceitável ao decepcionante. Mesmo assim, Sang-soo ainda foi capaz de criar o belo In the Front of Your Face. Ao contrário destes diretores, alguns novatos do cinema comercial fizeram ótimos filmes: Fukunaga e sua monumental elegia a James Bond, os criadores e diretores de Higehiro e Mare of Easttown que nos propiciaram seriados exemplares... Ainda, uma surpresa veio de gente antiga que parecia não nos surpreender mais: Spielberg, com o ótimo filme classicista que é a refilmagem de West Side Story. Completam a nossa lista dos melhores do ano algumas escolhas previsíveis: a inevitável presença de Clint Eastwood, o diretor que nunca erra; os aclamados dois filmes de Ryusuke Hamaguchi (diretor que já dá alguns sinais de desgaste, mas que ainda assim faz coisas boas); a esperadíssima animação de Mamoru Hosoda, Belle.

          Além das 10 produções que escolhemos no ranking, me lembro aqui de alguns filmes que vão do bom ao razoável (o que, para o cinema atual, já é muito), mas que não entraram para nosso elenco: Cliff Walkers, Raya and the Last Dragon, Stillwater, Luca, Train Again (boa descoberta experimental), Petite Maman, The Power of the Dog, One Shot, Azor, Ride or Die, Capitu e o Capítulo e Barb and Gare Go to Vista del Mar (bela estreia para o diretor Josh Greenbaum).

          Dadas estas explicações, e desejando a todos os nossos dois ou três leitores um ótimo ano cinematográfico de 2022, vamos aos nossos escolhidos:



1 - Sem Tempo Para Morrer, de Carry Joji Fukunaga

2 - Higehiro: After Being Rejected, I Shaved and Took in a High School Runaway, de Manabu Kamikita

3 - Belle, de Mamoru Hosoda

4 - Amor, Sublime Amor, de Steven Spielberg

5 - Mare of Easttown, de Gavin O'Connor

6 - Cry Macho, de Clint Eastwood 

7 - Tre Piani, de Nanni Moretti

8 - Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi

9 - In the Front of Your Face, de Hong Sang-soo

10 - Wheel of Fortune and Fantasy, de Ryusuke Hamaguchi

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Trader Horn (1931)





Existem alguns diretores, como Ford e Hitchcock, que fizeram um cinema irremediavelmente masculino. Dos problemas do homem. Em Ford este homem é bruto, mas ao mesmo tempo muito honrado, muito sensível. A encarnação, afinal, de John Wayne (muito mais do que de James Stewart ou de Henry Fonda: honrados, mas nada brutos). Em Hitchcock,  há um homem mais urbano, complexado, malicioso (ou às vezes muito santo) e carismático. 

Outros diretores seguiram esta peculiar tendência. Um elo perdido nesta genealogia é a filmografia de aventura do Major W. S. Van Dyke II (transcrevo assim porque ele adorava expor este nome enorme nos créditos iniciais dos filmes). 

No seu caso, há algo mais puro ainda do que em Ford, mais ancestral. Seus protagonistas aventureiros geralmente parecem emigrados das cavernas, mesmo quando são os mais letrados e civilizados. Não à toa a maior persona por ele posta em cena neste âmbito foi Tarzan, em 1932. Em Trader Horn (1931), no entanto, é que parece ter realizado o registro mais preciso da sua visão de masculino. 

No filme, dois white hunters, Horn, um velho aventureiro das savanas, e Peru, um jovem caçador, encontram numa tribo certa jovem branca, que ali fora criada para ser uma espécie de deusa. Daí iniciam uma jornada de resgate, comprando brigas com a selva, com animais e com os perigosos nativos. 

No filme há uma representação brutal dos caçadores. Vários animais são mortos em cena e a sangue frio pelos protagonistas, numa caçada quase real que dura mais ou menos um terço da projeção. Um nativo do local, Rencharo, braço direito de Horn, ajuda estes personagens no intento e curiosamente esta aliança introduz o espectador a um dado importante: ali não há exatamente menos ou mais civilizado, todos são vistos muito frontalmente e com igual dignidade. Sem quaisquer firulas. 

Posteriormente, algumas imagens esclarecerão a questão: as mulheres nativas seminuas, as cenas de imolação de corpos humanos, as canções gritadas e as plumas das vestes, tudo demonstra a beleza e o horror dos africanos. Enquanto isso, a precisão dos tiros proferidos pelos brancos contra os animais é testemunho do seu virtuosismo e da sua insensibilidade. 

Em dado momento, este signo de igualdade torna-se mais brutal: quando já fugidos com a deusa loura, os dois estrangeiros são confrontados pela perseguição de certos leões a uma presa comum. A filmagem dos animais, também bastante cruenta, é longa e contemplativa. Um elogio à força das bestas. Aí há mais uma igualdade, portanto: entre os seres humanos que matam e aqueles animais que dilaceram suas vítimas. O ponto em comum entre as três categorias de seres retratadas, africanos, brancos e animais, é o olhar de Van Dyke, que construiu ali seu bestiário. Para ele, enfim, o homem é uma besta. Muito interessante e bela na sua rudimentaridade, mas ainda assim violenta. 

O pessimismo do diretor, no entanto, não parece irremediável: há no filme duas relações de amor profundas, que apagam quaisquer traços de violência. 

A primeira delas é mais passageira, mesmo que contagiante, entre o jovem Peru e a moça resgatada. Os dois desejam a todo tempo fugir dos perigos e encontrar abrigo para seu amor e assim representam a fugacidade da juventude, mas, ao mesmo tempo, a esperança de um mundo para além da morte, para além da selva. 

A segunda forma, no entanto, é mais definitiva e está na amizade de Horn e Rencharo, o branco e o negro unidos indelevelmente pelo amor à aventura e àquele estranho mundo de perigos do qual não conseguiam se desvencilhar. 

Estas duas formas de amor, juntadas à bestialidade dos atos filmados ao longo da película, se condensam no emocionante final que nos dá uma lição definitiva: por mais que aqueles homens fossem brutos, todos eles não poderiam ser medidos por seus vícios, mas pelo tamanho do seu amor. O próprio narrar dos fatos pode comprovar: numa fuga belicosa contra inimigos, Rencharo se fere e morre nos braços de seu melhor amigo que, apesar de ser quem era, chora uma lágrima e parece não acreditar que perdeu seu único companheiro. O explorador se salva, assim como os dois jovens que, no fim, oferecem a ele que fujam todos os três para um lugar seguro. Horn responde que jamais iria, porque não gostaria de ter uma vida comum, ser casado e envelhecer; que permanecer eterno era estar ali frente ao perigo, ter uma vida inusual, mas descobrir rios por onde nenhum homem havia passado. Apesar de protestarem, os dois amantes pegam um barco para uma cidade próxima, enquanto, na margem, Horn acena para eles, um pouco triste por não compartilhar daquela mesma esperança. Mas volta os olhares para a savana e avista no céu a alma de Rencharo, como a lhe dizer para voltar ao seu ofício, a sua sina de sempre. Ele ensaia um sorriso, se junta a alguns nativos amigos e se embrenha na selva novamente. Fim. 

Não há como dizer que este sanguinário não fosse um grande homem. Assim como, anos depois, num outro filme de Van Dyke, Manhattan Melodrama, não seria possível dizer que o bandido interpretado por Clark Gable não fosse o homem mais honesto do mundo. Por isso, me parece mais correto dizer: o homem de Van Dyke não é somente bestial, mas é algo de tão originário que leva suas crenças até o limite. Não há boas maneiras que sejam remédio para suas decisões. E até por isso são algumas das maiores figuras que o cinema já viu.


In Facebook, 21/02/2021

 

Os Pássaros (1963)


 




Eu acredito que a nossa novíssima cinefilia, muito culta, regada a Cahiers e a Positif, profunda conhecedora do cinema americano, nunca deu o lugar devido a Alfred Hitchcock. Não que não haja admiração por ele. Não que o considerem menos que "um grande diretor". Mas, por algum motivo, me parece que nenhum deles diz o que é preciso: Hitchcock é muito superior a quase tudo. Infinitamente superior a quase todos. Senão o maior diretor de todos os tempos. Eu digo isto porque estou lá pela décima vez assistindo aos minutos finais dos Pássaros. Não sejam hipócritas... ninguém consegue repetir algo desta monta. Um filme tão imaginativo, em que quase nada se vê: imagens e cenários que se repetem, que permanecem claustrofobicamente inertes, como imagens vazias, enquanto algo se move do lado de fora e tudo se ouve. Esta é a sua tensão: ouvir os ruídos de uma tragédia inevitável, mas não saber quando ela virá. 

E quando ela vem? Quando ela vem, surge uma outra coisa que ninguém,  exceto Hitchcock, faria: o exagero que transmuta o resultado dos medos de uma cidade inteira numa revoada barroca, descomunal, de pássaros aparecidos como que por ira divina, uma oitava praga egípcia. E, ao contrário de em quase todos os seus filmes, aqui este mistério não se resolve: ninguém pode vencê-los, os pássaros. 

Até por isso, este me aprece o filme mais pessoal, mais hitchcockiano que Hitchcock poderia fazer: é a tensão da sua força criativa invencível contra o mundo. O mundo é a cena e a sua força como construtor, realizador e artista é a praga com a qual ele põe à prova esta realidade. A burila, quebra, destrói. Estes pássaros são a marca da sua personalidade ególatra tão criticada, mas que propiciou a genialidade de sua obra. Durante décadas ele havia edificado, neste intento, imagens de uma beleza curiosa e desproporcional, parecendo propositalmente fabricadas para afirmar a sua força como senhor de sua arte. Mas é somente agora, neste filme, que ultrapassa os limites do imanente e se acha no direito divino de amaldiçoar a humanidade. 

Não querendo discordar muito de sua elevada autoestima, acredito que o mínimo que devemos a um homem como este é reconhecer, como em tudo aquilo que reluz uma centelha da Beleza suprema, a glória inusual e superlativa dos seus filmes. Não fazer isto é perder tempo querendo descobrir falsas pepitas de ouro ou discutindo firulas. 


In Facebook, 08/02/2021

sábado, 16 de janeiro de 2021

The Undoing (2020)

                                            


         Ontem terminei de ver uma das minisséries do momento, The Undoing. Igual a muita coisa por aí, tem suas qualidades e seus defeitos, sem representar quase nada de remarcável, exceto por uma tensão que se instaura ao longo da história e que muito menos tem a ver com ela mesma do que com referências externas ao seriado.

          A questão central ali, a questão dramatúrgica, que impulsiona o drama, é a seguinte (e aí vem um spoiler): poderia uma persona como Hugh Grant marretar a cabeça de uma linda mulher por 11 vezes?
Ora, nós, o público, conhecemos Grant há mais de 30 anos. As figuras que ele encarnou até hoje são muito regularmente parecidas: de alta confiabilidade, ternas, muito engraçadas e sempre otimistas. Tão regulares nestes adjetivos que semrpe pensamos que já não são personagens em separado, mas que é a própria personalidade de Grant que molda a vida destas pessoas (algo que só acontece com grandes atores, ao contrário do que se possa pensar).

     É, a priori, portanto, inconcebível que Grant possa ser um assassino brutal em qualquer circunstância, na vida ou na arte. Não que não seja capaz de, teoricamente, representar um assassino. Mas, para isso, seria preciso se desvencilhar da sua persona, ou pelo menos reformulá-la, de modo que este dado brutal seja palatável a todos.

         The Undoing quer apostar numa mera reformulação, para poder explorar também o marketing que as formas mais conhecidas da atuação de Hugh possuem: todos os seus trejeitos tradicionais continuam e inclusive muitas frases do roteiro parecem ter sido feitas sob medida para a comicidade própria dos seus personagens. Há, também, com isso, uma outra tática: a de instigar a audiência a colocar-se como uma espécie de testemunha de defesa de Grant. Pois, já que, mesmo com todas as evidências de sua culpa, continuava o seu personagem a ser mais ou menos como o Hugh que conhecemos, poderíamos sempre duvidar da sua malícia.

       Toda esta publicidade, este marketing em torno da possibilidade nefasta acerca do nosso sempre herói, não passaria de uma grande enganação (como, de fato, não passa) se não houvesse algum diretor eficiente por trás desta história que: 1 - ou preparasse, em paulatinas mudanças climáticas, o público para aceitar a vilania do nosso mocinho romântico; 2 - ou o redimisse, no fim, para que comprovássemos sua idoneidade de sempre.

        Isto não acontece: inventam um final um tanto imbecil para revelar-se a sua culpa, algo deslocado aos supetões, em diversas esferas (de montagem, de direção de atores...), do contexto estético dos outros episódios. Em palavras grossas: uma forçação de barra para colocar goela abaixo do público que nós não podemos confiar em ninguém.

       Pois eu protesto: Hugh Grant é incapaz de matar. Não matou. E não há confissão que me convença. Pelo menos não vinda da boca do mesmo homem que conhecemos, como já dito, há mais de 30 anos. E eis aí o grande pecado do Undoing: achar que nós precisávamos de uma lição moral sobre nossas crenças na ficção. Não sabem que muitas vezes nós, o público, sabemos muito mais da ficção que os ficcionistas.

    Para terminar, isto me lembra uma pequena história ocorrida no Brasil, em que, numa novela, tentaram fazer com que Tony Ramos encarnasse um vilão, no que o público respondeu ferozmente, fazendo com que roteiristas mudassem o rumo de seu personagem. Como neste caso, acho que é justo dizer para que não inventem o impossível: assim como nosso Tony, Hugh Grant é incapaz de matar.






06/12/2020, in Facebook.

Mank (2020)





MANK (2020)

 

            Seis anos separavam Mank do último filme de David Fincher, Garota Exemplar. Era, portanto, uma estreia esperada, uma ótima oportunidade para Fincher provar mais uma vez a excelência que seus filmes recentes têm demonstrado.

            Até por isto, faltam palavras para descrever a decepção desta biografia de Herman J. Mankiewicz. Não só isto, mas também faltam palavras de um sentido mais técnico: é difícil descrever em minúcias críticas quais foram, ponto a ponto, os erros do filme. Há muita coisa nebulosa, desorganizada, claramente precária, mas difícil de ser esmiuçada.

            No entanto, tentemos: me parece que o principal “veneno” que corroeu as estruturas do filme reside numa espécie de “simbólica” muito histriônica e malograda. O filme parece ser todo erigido em torno de uma simbolização da antiga Hollywood e da vida de Mankiewicz que, antes de ser uma boa ficção, é a pior das caricaturas.

            Em primeiro lugar, o uso forçoso de uma fotografia alla Kane ou à moda noir não parece nada orgânico. Há exageros de contraste que se somam a exageros na composição do décor, tudo num intuito claro de forçar, de modo bastante grosseiro, o entendimento do espectador a perceber que “está-se fazendo uma bela homenagem aos clássicos”.

            Em segundo lugar, a montagem parece uma das coisas mais desleixadas que um diretor consagrado poderia fazer. Há alguns cortes abruptos em imagens de memórias e os flashbacks parecem ser desordenados propositalmente, tudo isto  para representar uma memória errática, mas o resultado é desastroso. Essas centelhas das lembranças de Mank, quando montadas, parecem tão lacunares que perdem qualquer força que poderiam ter. Mais uma vez há, aqui, um problema de representação: o comprimento das imagens e a forma de sua disposição parecem ter sido feitos para gerar uma caricatura dos acontecimentos, mas não para expressar o verdadeiro peso que eles tiveram na vida do protagonista. A impressão gerada é a de que os fatos são “jogados” aleatoriamente, preguiçosamente, a nossa vista.

            Um dado presente no filme, no entanto, o salva do fracasso total. Se é verdade que Mank é um filme que, em alguma medida, quer fazer justiça à memória do homem que influenciou terminantemente um dos melhores filmes do mundo, seu único trunfo reside num objeto, criado por Mankiewicz, e que foi decisivo para amarmos tanto assim Citizen Kane: Rosebud. Em Mank não há trenós, mas este objeto de desejo a ser perscrutado e reencontrado pelos espectadores é a vida do próprio Mankiewicz que, sem dúvida, representaria um material interessante até no pior dos roteiros. Sua vida atribulada, de doenças e vícios, sua relação com Welles e sua redenção, na feitura do roteiro de Kane, são episódios caros a todos nós e, mesmo mal representados, continuam atrativos.

            O saldo final é bastante negativo, claro. E mais parece, depois disso, que o verdadeiro interesse de Fincher hoje é Mindhunter, sua bem-sucedida série de TV, na qual ele vêm exercendo, em algumas incursões como diretor de episódios, experimentações eficazes que relembram os melhores momentos de Zodíaco. Que volte para o cinema, mas sem a preguiça que acometeu este último e profundo lapso de sua carreira.