quinta-feira, 10 de agosto de 2017

As Duas Escolas de Shaolin

         

          Há alguns dias fiz uma postagem no Facebook acerca de uma suposta "genealogia do cinema da Shaw Brothers". Para explicar melhor gráfico que montei, replico a postagem aqui e, logo depois, faço comentários a ela:


         "Me desculpem por insistir nesse assunto que interessa a tão pouca gente, que é o cinema de Hong Kong, mas eu estive pensando e acho que existe uma espécie de árvore genealógica da Shaw Brothers que acabou dividindo o cinema de ação chinês em duas vertentes principais: uma mais prosaica, fundada em bases mais literárias, uma mais poética, fundada em bases mais operísticas e pitorescas. Isso se deve ao fato de que os grandes divisores de águas do Wuxia (ou, pelo menos, os dois símbolos dessa divisão de águas), Cheh Chang e King Hu, acabaram fundando duas "escolas de ação" que perduram até hoje e que conservam, ou pouco ou muito, os interesses estéticos pessoais desses dois diretores.

          Perdoem pela imagem ser um pouco tosca e considerem linhas retas como influências diretas e linhas diagonais como influências indiretas.




          ERRATA - O correto seria Han-Hsiang Li ou Han Hsiang Li" 



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        Em primeiro lugar: este gráfico é, digamos, a "árvore mínima possível". Há muitos outros parentescos mais indiretos que poderiam ser citados e outras ramificações possíveis (por exemplo, tenho para mim que Stephen Chow deriva indiretamente de Chor Yuen, porém prefiro não afirmar ainda categoricamente), mas preferi me ater aos cineastas de parentesco mais evidente e, ao mesmo tempo, digamos, "comprovado historicamente", onde há documentação clara de que os "mestres" trabalharam ao lado dos "discípulos".

          Mas, então, vamos a uma explicação mais clara de como esses parentescos se deram e de como e por que mestres e discípulos tiveram contato:

            O próprio Pierre Rissient já alertou algumas vezes para um dado que hoje é um tanto ignorado (minto: é completamente ignorado) pelos analistas dos cineastas da SB: eles eram, em geral, pessoas de muita cultura e, ainda, pessoas com um entendimento formidável da própria cultura chinesa. Assim, Han-Hsiang Li sabia de cor discernir a mobiliária, a arquitetura e a moda chinesas (aliás, ele começou no cinema como ator, mas também na parte de direção de arte), delimitando em qual dinastia cada uma teria sido elaborada, além de ter uma magnífica cultura literária nos clássicos chineses e, especialmente, na ópera chinesa. Do mesmo modo, antes de ser cineasta, King Hu sempre teve um interesse especial pela ópera huangmei. Cheh Chang foi calígrafo, poeta e crítico de cinema antes de ser diretor.

         Estes dados já clareiam bastante algumas coisas, mas prossigamos: quando Han-Hsiang Li chega à SB (que aqui ainda era SB Company e não SB Studio, sendo esta última a Shaw Brothers que mais se conhece hoje), em 1956, era obviamente a pessoa mais apta a colocar em prática filmes de ópera e históricos que seriam carros-chefes desta última fase da SB Co. e da fase inicial da SB Studio. Assim, Li começou a trabalhar como diretor e, por conseguinte, a edificar a sua estética e a sua mise-en-scène, que sempre foram naturalmente embasadas neste seu arcabouço cultural predominantemente histórico e lendário. Um arcabouço, digamos, peculiar: a sua obsessão era com as histórias milenares e já consagradas, com os fantasmas, com as tragédias que, mesmo tendo acontecido na vida real, já ocorreram há tanto tempo que são espécies de lendas que transformam seus personagens em arquétipos da vida humana. Isto tudo o leva ao conhecimento técnico-histórico das dinastias, mas não o contrário. Ou seja: sua predileção pela história chinesa sempre se dá pelo intermédio do seu gosto primordial por esta eternidade, por este caráter legendário e arquetípico que promana dos fatos ocorridos ao longo das mais diversas épocas de seu país. E, é claro, mais propriamente o seu interesse não é na "prosa" dessas histórias, mas na retratação desta eternidade contida nelas, seja pela ópera huangmei em especial ou, mais generalizadamente, pela suntuosidade das tragédias milenares de reis e rainhas.

           Aqui vale uma nota: chama-se comumente pelo nome de wuxia tradicional as histórias chinesas clássicas geralmente protagonizadas por personagens femininas, quase sempre sobre o enredo de um amor trágico e impossível e muitas vezes recheadas de elementos fantásticos (fantasmas, espíritos, deuses, etc.). Todos os grandes clássicos deste gênero foram adaptados para a ópera huangmei. Daí se depreende mais um detalhe sobre Li: se o seu interesse é sobre as histórias lendárias do seu país, ele o conduz ao seu interesse operístico. É este o interesse formal dos seus filmes de ópera: a eternização das lendas por meio da cenografia de ópera chinesa. E se a nossa cenografia ocidental de teatro lírico é, por assim dizer, mais afeita às disposições da pintura que o normal do nosso teatro prosaico (e, por isso, já é, por si mesma, geradora de uma mise-en-scène menos prosaica), até para que se dê mais valor ao canto dos intérpretes que às suas ações, na cenografia do teatro lírico chinês é ainda mais evidente uma evocação de valores pitorescos. É tudo profundamente estático: o posicionamento dos atores, a repetição, a rigidez esquemática e a lentidão de gestos, a própria melodia (para além dos caracteres cênicos), bastante repetida nas frases musicais, é propriamente desprezível. O que resta é basicamente as imagens das figuras dos atores impressas no quadro formado pelo palco (no caso do cinema, formado pela tela) e o enredo das histórias que contam (cantam). Estes enredos, logicamente, servem não exatamente para produzir ações no palco, mas para ressignificar o próprio papel dos atores: o ator-cantor lírico chinês é simplesmente uma figura, uma imagem retratada no palco, mas que só ganha impacto quando sabemos o que ela significa de fato (ou seja: quando sabemos qual é a sua história). É como se, da mera imagem, do mero corpo do ator, que, em si, não significa nada além de um corpo humano comum, passássemos a compreender a sua alma quando compreendemos toda a sua história de vida. E mais: quando passamos a identificar a sua figura material com a sua alma espiritual, verificamos efetivamente a sua eternidade esteticamente perpetrada por meio desta cenografia tão peculiar e pitoresca. É preciso que se lembre aqui: se a nossa cenografia de teatro lírico, em algum ponto deriva da nossa pintura ocidental, “tridimensional desde o Renascimento”, afeita aos movimentos, às noções de perspectiva, a cenografia deste mesmo teatro no oriente deriva de uma pintura que é bidimensional há séculos (é assim até, pelo menos, o fim do século XIX), e que assim é justamente por uma grande influência religiosa e espiritual na arte do sudeste asiático, mas também por toda uma visão peculiar de mundo, todo um arcabouço cultural que se traduz esteticamente e que aqui seria infrutífero esmiuçarmos, pois seria tema de um texto à parte. Em resumo, não só o teatro chinês, mas a arte chinesa como um todo é evocativa de imagens, por assim dizer, fixas, imóveis. Portanto, tudo é muito pictórico. Ou seja: se no nosso teatro de ópera o parentesco com a pintura é verificável indiretamente, na ópera huangmei isto fica ainda mais evidente, pois toda a arte chinesa da qual ela deriva contribui para isso. E se esta arte, enraizada religiosamente, converge-se para imagens estáticas e bidimensionalizadas (análogas aos ícones religiosos do cristianismo que perderam força no ocidente, mas hoje têm sua continuidade principalmente na parte oriental da Igreja e entre os ortodoxos), converge-se também para uma conceituação muito própria de eternização por meio da imagem que é quase espiritual. Por assim dizer, penso que são mais pinturas de almas do que de corpos, mais retratos de fantasmas do que de vivos. É por isto que toda a pintura chinesa é muito mais espiritual que material e, neste sentido, também muito mais poética que prosaica. É neste sentido que delimitei a primeira ramificação da minha árvore genealógica como uma veia mais poética e que derivava da ópera chinesa e da pintura. Não seria possível dissociar essas duas influencias fulcrais.

          Quando King Hu chega à Shaw Brothers, por sua vez, também já carrega em si grande interesse pela ópera huangmei. É por isso que se alia à equipe de Li, tornando-se assistente de direção deste. De Li, ele herda muita coisa, entre as quais um apego especial às personagens femininas e uma afeição pelas histórias de espíritos. Mas também todas as bases da mise-en-scène de teatro lírico advindas dos filmes de ópera de seu tutor. Na realidade, digamos, Hu se apega desde o princípio às bases mais importantes do wuxia tradicional, sem nunca tê-las largado mesmo quando resolveu fazer o “wuxia de capa e espada”, que é aquele pelo qual é mais conhecido. De seu mestre, digamos, não carrega tanto o interesse histórico, mas principalmente esse interesse operístico, o que é curioso, porque, de fato, só fez um filme de ópera, o seu primeiro longa, The Story of Sue San. Mesmo assim, é possível dizer que foi com Hu que esta cenografia operística se perpetuou para a posteridade com mais vigor e qualidade: enquanto alguns só a utilizaram quando de fato fizeram ópera huangmei no cinema (gênero de filmes que logo caiu em desuso), Hu conseguiu transferi-la para o “novo wuxia” e ainda criar descendência.

          Esta descendência, por sua vez, é direta e indireta: Sammo Hung foi seu diretor de ação em filmes de altíssimo nível, como O Destino de Lee Khan e The Valiant Ones (este último deve conter a melhor direção de ação de todos os tempos, na sua sequência final). E, sem dúvidas, este ofício, no cinema de kung fu, sempre gerou heranças, mesmo que indiretas: o diretor de ação é sempre diretor de uma ação que retrata, nas artes marciais, todo o espírito de uma obra cinematográfica maior, comandada pelo diretor (Jonh Woo fala um pouco sobre isso no prefácio ao livro Chan Cheh: A Memoir, que eu traduzi aqui neste blog). Não há dúvidas que, deste modo, os diretores influenciem seus diretores de ação. E, nesta perspectiva, Hung herda de Hu certos aspectos de sua obra, mesmo que isto seja de difícil verificação em alguns momentos. O principal, ao meu ver, é uma certa sobriedade de um gestual esquematizado e preciso, em contraponto ao desejo de querer espetacularizar as cenas de ação (tendência de Kar-Leung, por exemplo).

          Esta mesma influência ocorre, mas mais diretamente, no seu pupilo, Tsui Hark. Para perceber isto não é preciso dissertar muito, os filmes falam por si mesmos e logo sabemos de onde vêm os fantasmas e espíritos que assombram o Detetive Dee e outros personagens. Não procurarei falar tanto sobre estas influências mais evidentes (o texto já está longo demais e prefiro me debruçar sobre o que, penso eu, as pessoas ainda não deram a devida atenção).

           Mas, em meu gráfico eu delimitei duas escolas de Kung Fu e a segunda, mais prosaica e filha da literatura, era capitaneada por Cheh Chang.

           Como já disse aqui, antes de ser cineasta, Chang se dedicou profundamente a diversas áreas de literatura. Pelo seu ofício de poeta, foi empregado na Shaw Brothers como roteirista e letrista para as canções de filmes de ópera. Daí, temos a divisão fulcral: se Li e Hu eram pintura, Chang é literatura. Ambos utilizam a ópera para chegar às suas afeições verdadeiras: uns às imagens, outro às palavras. É por isto que, também, o cinema de Li e Hu é espírito e o de Chang, carne: é dele os litros de sangue, é dele as tragédias não lendárias nem palacianas, mas heroicas e sofridas, frutos da coragem do homem (e do homem mesmo, pois a obra de Chang, ao contrário da dos outros dois, é predominantemente masculina) que se esfarrapa por sua honra e por seus valores. Seu legado é bastante claro: as suntuosas lutas de Lao Kar-Leung e o gosto deste pelo heroísmo (os heróis que morrem, literalmente, de pé em Eight Diagram Pole Fighter já morriam desta forma em Chang), mas também as tragédias mais do que físicas e viscerais de Woo e, principalmente, o seu entendimento sobre a temática da amizade masculina (temática principal da obra de Chang), que será levada aos termos máximos dentro do cinema de kung fu por meio do seu antimaniqueísmo tão característico.

         Para terminar esta análise, é preciso ainda que eu explane o porquê da última ramificação do meu gráfico. Acho que é justo dizer que todo o cinema de ação é derivado da dança, do teatro bailado, a arte cenográfica mais poética que existe, mas, ao mesmo tempo, mais material. Neste sentido, poética não é sinônimo de afeição ao espírito. No fundo, todo o cinema de kung fu (e, em especial, este, porque é mais bailado que qualquer outro cinema de ação), seja pitoresco ou literário, é, em última instância, muito mais poético que qualquer outro cinema não-experimental. E é por isso que quando falamos no cinema dirigido por diretores de ação (como Hung e Kar-Leung), tão afeitos a um cinema de confronto corporal, de exaltação da beleza da ação propriamente dita, não estamos falando, por estarmos no capo de um cinema material por excelência, falando de um cinema de menor poesia. Ao contrário, é um cinema de enorme poesia, porque é um cinema de contemplação, que não utilitariza o ato, mas que o venera na sua beleza tão somente, na beleza da ação enquanto ação, do gesto enquanto gesto (e não é isso que é a dança, não é isto que é o balé, por exemplo?). Deste cinema, cujos representantes iniciais no meu gráfico são Sammo Hung e Lao Kar-Leung, entendo que o herdeiro mais recente seja Jackie Chan, iniciado nesta arte da direção de artes marciais tanto por Hung quanto por Lao. Seu legado, apesar de inferior ao de seus tutores, carrega as marcas destes, que são tão evidentes que não são necessárias para a menção.

        Por hora, são estas as conclusões que penso serem amplamente verificáveis no contexto do cinema da Shaw Brothers. No entanto, há tantos outros cineastas (alguns ótimos), tantos discípulos e possíveis ramificações... O certo é: se o cinema chinês hoje sobrevive (e sobrevive bem) isto se deve a estas escolas que perduraram com força. E se estas escolas existem, isto se deve à oportunidade que seus autores iniciais tiveram em colocar à disposição do cinema suas bagagens culturais imensas. E esta oportunidade, esta oportunidade se chamou Shaw Brothers.