sábado, 23 de fevereiro de 2019

Alguns filmes esquecidos




ALGUNS FILMES ESQUECIDOS
 WITNEY, PIROSH & Co.


            A partir desta semana, o The Forbidden Past inaugura uma coluna destinada exclusivamente a uma de suas vocações, que é a da divulgação de diretores e filmes que padecem injustamente de certo ostracismo. Regularmente haverá a publicação de pequenos textos sobre “alguns filmes esquecidos”, mas que merecem certa atenção.  Seguem, sem mais delongas, os comentários desta primeira semana.


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Valley of Kings (1954)


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            Robert Pirosh foi roteirista em dezenas de seriados e filmes, entre os quais alguns filmes com os irmãos Marx e ao menos uma obra-prima, “I Married a Witch”, de René Clair. Sua carreira como diretor, no entanto, foi bastante curta. “Valley of Kings” é o terceiro de seus cinco únicos filmes, a história de uma mulher obcecada em seguir os rumos do pai e descobrir no Vale dos Reis a tumba de Ra-Hotep, um antigo faraó que, segundo ela, teria aspirações cristãs ainda desconhecidas pela maioria dos historiadores. Para sua empreitada, se alia a um aventureiro, que, com ela, passa viver numa rede de intrigas e traições daqueles que, supostamente, eram seus aliados. 

            DeMille já havia, nos anos 1910, nos deixado a lição de que uma das maiores formas de se constituir um mundo de fantasia é pelo realismo. Assim fez nas escadarias enormes do templo asteca em “The Woman God Forgot” e parece que há algo disto no Egito captado por Pirosh. A cena da tempestade de areia é absurdamente realística e um evento de grande beleza.

            Além disso, há ainda a fluidez do enredo (que correria os riscos de parecer condensado demais nos menos que 90 minutos de projeção), as imagens dos planos abertos de um Egito deslumbrante e perdido no tempo, algumas fotografadas com certa complexidade estilística, como se valorizassem, a despeito da horizontalidade natural do enquadramento, a verticalidade dos edifícios, como é o caso de alguns dos planos finais do filme, quando o casal protagonista já está perto de desvendar o mistério da tumba. Tudo bastante realista, sem que se esvaia a fantasia que, neste caso, também é memória dos tempos ancestrais.


Master of Ballantrae (1953)


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            Último filme de William Keighley, “Master of Ballantrae” é uma aventura , ao estilo capa-e-espada, passada na Escócia durante a Revolta Jacobita. Dois irmãos, da família dos nobres Durie, são impelidos a tomar parte no conflito, cada um de um lado, para que, seja qual forem as consequências da insurreição, os negócios da família fiquem garantidos. Jamie (Errol Flynn) permanece do lado dos rebeldes mas, ao perder uma batalha, precisa partir para a França, junto a um companheiro de revolta, o Coronel Francis Burke. A caminho da partida, se despede de sua querida Lady Alisson com um beijo amoroso, no que é observado por Jessie Brown, que por ele nutria uma forte paixão. Ela o trai e os ingleses o atingem com um tiro. Cai no mar e seu corpo não é encontrado. É dado como morto. Pensando que seu irmão o havia traído, retorna às escondidas para que duelassem juntos, e, na disputa, é, acidentalmente, apunhalado. O irmão pensa que o matou, tenta socorrê-lo. Vai avisar a um amigo que havia, dessa vez, visto o irmão morto de verdade, por suas próprias mãos. Ao retornar à cena do crime, no entanto, nada encontra, somente o punhal ensanguentado. E, com isto, pensa: “este aí tem mesmo pacto com o Diabo, porque não morre nunca”.

            Estas são as primeiras mortes e ressurreições das séries de desventuras e sortes que Errol Flynn terá até o fim do filme. Uma aventura atípica, que em algum momento se transforma em filme de piratas, noutro em romance familiar. “Master of Ballantrae” conserva alguns momentos interessantíssimos para o cinema de ação: a decupagem das cenas de duelo tem algo de inovador e parece prenunciar algumas coisas que se veria no cinema de kung fu posterior. Além disso, o filme é um dos momentos mais primorosos da carreira de fotógrafo de Jack Cardiff, produzindo imagens realmente impressionantes e incomparáveis.

            William Keighley já havia anteriormente dirigido Flynn em alguns filmes, quase todos com o mesmo perfil, incluindo o grande clássico “As Aventuras de Robin Hood”. No entanto, junto com o filme co-dirigido por Michael Curtiz, esta parceria parece o melhor dos momentos que a dupla pôde nos legar.  


Stranger at My Door (1956)


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            Um grupo de bandidos saqueia um banco e coloca em polvorosa um pequeno vilarejo do oeste. O temido Clay Anderson (Skip Homeier), líder do grupo, foge e encontra asilo no estábulo de um rancho, onde é acolhido pela bela mulher de um pastor protestante, Peg Jarret (Patricia Medina), e por seu filho pequeno. Quando o pregador chega em casa, reconhece Clay, mas toma uma atitude curiosa: resolve continuar sem avisar às autoridades, a fim de converter o bandido no tempo em que ele ali fizesse pousada. O ladrão se apaixona pela mulher de seu benfeitor, mas ela, depois de descobrir sua verdadeira identidade, cada vez mais o odeio. Ao contrário, o filhinho do casal sonha em ser um pistoleiro temido como o mitológico Clay e, sem saber que este vive sob o mesmo teto seu, a cada dia mais se afeiçoa com o novo “ajudante” nos afazeres do rancho, o bandido disfarçado.

William Witney, diretor do filme, foi dono de uma longa carreira de quase 50 anos e mais de 140 filmes, permeada por diversos outros westerns, seja para o cinema ou no formato das séries de TV. O âmbito do cinema serial, talvez, tenha sido a verdadeira especialidade de Witney, até acima do faroeste: mestre das séries de aventura da Republic Pictures, o diretor realizou pelo menos dois clássicos absolutos, “A Volta do Zorro” (1937) e “O Homem de Aço” (1941).

Misto de história de milagres e tragédia redentora, “Stranger at My Door” é um dos grandes filmes de Witney, que condensam em si algo que lhe era muito peculiar: uma certa ascese visual, desde a concepção dos cenários até os gestos dos personagens. Os ângulos em que é filmada a igreja semi-pronta, que o pastor constrói no rancho e que servirá de altar de expiação para Clay, delineiam estruturas pétreas e minimalistas; os gestos do bandido, tão duros, mas tão espontâneos, relembram em alguns aspectos, mesmo que tênues, aqueles do herói do Capitão Marvel em “O Homem de Aço”, um personagem mais despido de fantasia que de realismo. Mas não há, por isso, de se pensar que a frieza dos blocos de pedra erigidos por William Witney não permitam arroubos inefáveis de emoção. Pois é justamente destas estruturas ancestrais, mas intrincadas, que brotam os momentos de candura.



Mauritz Stiller, por Georges Sadoul e Jean Tulard



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Ele igualou seu conterrâneo, Sjöström, no tocante à direção, apesar de ter um tom bem diferente, com grandes sagas nacionais, muitas das quais adaptadas de Selma Langerlöf: O Tesouro do Senhor Arne, A Saga de Gösta Berling e A Nevasca. Foi particularmente grande quando inspirado pelos romances escandinavos, onde, assim como heróis bem típicos e individualizados – de sentimentos bastante sutis -, os cenários foram personagens do drama. O navio preso no gelo e a fortaleza onde estão cativos os prisioneiros de O Tesouro do Senhor Arne; o grupo de renas na neve e a paisagem de onde chega a Dama do pesadelo assombrado de A Nevasca; a atmosfera dos anos 1820 em Gösta Berling, tudo isto lhe põe na linha de frente dos maiores cineastas.

A despeito disto, ele foi, com um nervosismo elegante, um mestre da comédia ligeira, principalmente em Erotikon, brilhante quadrilha mundana advinda do teatro “boulevardier” da Europa Central, assim como foram os sucessos americanos de C.B. DeMille e Douglas Fairbanks. 

Seu sucesso chamou a atenção de Hollywood, que o chamou para lá. Porém, a capital do cinema americano não lhe trouxe bons frutos e, apesar de ter levado Garbo até lá, nunca pôde filmar qualquer um de seus filmes, retornando, bastante doente, para morrer na Suécia.

Foi tão delicado quanto Sjöström foi massivo. E, a propósito disto, disse Delluc: “Ele lida com o branco e com o negro com a atenção sutil de um trovador. É, para a arte do cinema mudo, o que foram Charles D’Orléans e Louise Collet para a arte da rima. E, por instantes, parecemos imaginar que arpeja luzes docemente sonoras, sobre não sei que cordas cantantes”.

(Georges Sadoul, em Dictionnaire des Cinéastes. Tradução: Yuri Ramos)


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Com Sjöström, é outro grande pioneiro do cinema escandinavo. Filho de um músico de origem judaica, ele se opõe a Sjöström por sua saúde delicada, suas depressões abruptas e uma arte mais atormentada. Seus primeiros filmes foram melodramas sombrios (em O Vampiro, um jovem oficial se vinga de uma atriz que destruiu sua carreira, largando em cima dela a cortina de ferro de um teatro), filmes policiais (o bando dos "máscaras negras"), vaudevilles (Amor e Jornalismo) que teriam influenciado Lubitsch. Seu primeiro grande sucesso é uma comédia encantadora: Erotikon. Mas é filmando suas sagas que ele realmente se impõe: O Tesouro do Senhor Arne, baseado em Lagerlöf, com imagens suntuosas do enterro final da heroína, numa longa procissão, influenciará o Ivan, o Terrível, de Eisenstein. Além deste, A Nevasca, ainda em adaptação a Lagerlöf, e, especialmente, Gösta Berling, que revela Greta Garbo.

Lendas sobre sua peculiaridade rondam a figura de Stiller: não mudava de roupa durante as rodagens de um filme por medo de mudar, assim, também, a homogeneidade da obra. Suas roupas eram excêntricas e seu comportamento era muitas vezes estranho. 

Depois de Gösta Berling, onde pôde "reviver a atmosfera dos círculos aristocráticos e extravagantes as Suécia em seu áureo período do século XIX" (John Béranger), a MGM ofereceu-lhe uma oportunidade de ouro para trabalhar em Hollywood. Ele aceita, mas apenas se Greta Garbo também estiver envolvida. Eles chegam aos Estados Unidos em julho de 1925. Mas Stiller se dá mal com Irving Thalberg, a eminência parda da MGM.

Ele será reduzido a um mero espectador, enquanto sua criatura se torna uma das maiores estrelas do cinema. Acometido de depressões incessantes, Stiller só pôde dirigir, depois disto, dois filmes: Hotel Imperial e Confissão. Ele adoece e tem que retornar a Estocolmo, quando conta cerca de quarenta e cinco anos de idade. Só mais tarde Garbo poderá se reunir novamente com ele, em seu túmulo, no cemitério judeu. Ela lhe devia sua carreira.

(Jean Tulard, em Dictionnaire du Cinéma  - Les Réalisateurs, 1895-1995. Tradução: Yuri Ramos)

O Tesouro do Sr. Arne, por Jean Mitry




A ação se passa no século XVI. Tendo descoberto um complô entre um grupo de mercenários escoceses, o rei da Suécia manda prender seus líderes. Dentre eles, três escapam, sequestrando uma mulher, roubando o cofre que continha as economias do velho Arne, e aniquilando testemunhas desagradáveis. A sobrinha do velho fazendeiro demora a reconhecer os três bandidos e acaba se apaixonando por um deles. Depois disto, ela não tarda a conhecer a verdade, mas, desejando salvar aquele a quem ama, acaba perecendo com ele. Sequência de admiráveis imagens, compostas com uma arte pictórica extrema, esta lenda, contada em um ritmo lento e monótono, é uma das mais belas obras do cinema escandinavo. O cortejo fúnebre, seguido por uma longa procissão através das solidões glaciais, é uma das visões mais memoráveis da história do cinema.


Jean Mitry em Dictionnaire du Cinéma. Tradução: Beatriz Saar

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Borges no Cinema Brasileiro, por Carlos Hugo Christensen


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A nossa vida é marcada profundamente por autores e livros ao longo de suas diversas etapas. Uma determinada literatura deslumbra o fim de nossa infância, outra toma conta de nossa adolescência e novas manifestações literárias, com eventuais retornos às anteriores, dominam nossa juventude e maturidade.

No meu caso, só um autor permaneceu sempre perto de mim no longo período da adolescência até os dias atuais: Jorge Luís Borges. Na verdade, até hoje o leio quase diariamente, e quase diariamente descubro novos mundos no seu misterioso e fascinante universo.

Otto Maria Carpeaux qualificou a obra do grande escritor argentino como "fundamental do século XX", acrescentando: "sua influência se confundirá com a de Kafka", omitindo, ao meu ver, uma diferença de enorme importância entre os dois escritores: no universo borgiano, mesmo composto de erudição e metafísica, lateja, no entanto, uma vivência ardente e melancólica. E, talvez, nenhum outro relato prova tão lucidamente esta última afirmação como A Intrusa.

A chance de levar ao cinema essa pequena obra-prima representa para mim o mais precioso presente que recebi em toda minha carreira. Eu namorava este conto há muitos anos. Borges recusava-se a permitir a transposição para o cinema com receio de que se fizesse com ele um filme pornográfico. Quando, finalmente, decidiu-se autorizar sua filmagem, eu tive o privilégio de ser o escolhido, apesar das milionárias propostas de vários produtores estrangeiros para compra dos direitos, muito superior às possibilidades de um produtor brasileiro. Esse fato tornou ainda maior a minha responsabilidade. É com angústia que aguardo a hora de enfrentar o público e a crítica. Espero ter mais sorte que os colegas que me antecederam na temível experiência de filmar Borges. Bernardo Bertolucci fez “Estratégia da Aranha", baseado no conto "Tema do Traidor e do Herói", e o resultado foi negativo. Tentativa frustrada repetiu-se na França e por três vezes na Argentina.

Realizei A Intrusa com toda paixão que sinto pela obra do autor e que conheço profundamente. Aliás, posso não vir a ser um grande intérprete de Borges, mas, tranquilamente, sei que sou um dos maiores conhecedores de sua obra. Não me limitei a narrar com imagens o belo conto, procurei também, sem prejudicar seu ritmo, colocar vários símbolos que marcam constantemente a literatura de Borges.

Tudo fiz, dentro das minhas possibilidades, para que A Intrusa esteja à altura do original. Mesmo porque o próprio autor gosta dessa história. No prólogo de seu livro Nova Antologia Pessoal, Borges escreve: "o tempo, cuja perspicácia crítica tenho ponderado, persiste em recordar dois textos que me desagradam por sua fatuidade laboriosa: Fundação Mítica de Buenos Aires e o Homem da Esquina Rosada. Se aqui os inclui é porque o leitor os espera. Quem sabe que obscura virtude haverá neles? Naturalmente, prefiro ser julgado por Limites, A Intrusa, Golem ou por Junin."


Polêmicas em torno de “A Intrusa”



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Para além das dificuldades técnicas enfrentadas na produção, Christensen enfrentou as mais diversas polêmicas e censuras de todos os lados em relação a seu filme.
A começar, a exibição foi completamente vetada na Argentina, onde só veio a estrear anos depois, com grande receptividade da crítica (um pouco ao contrário do que houve no Brasil, onde muitas opiniões se registraram reativas ou mornas).
A “querela Borges”, que envolvia a relutância do autor do conto original em ceder seus direitos para a adaptação cinematográfica (com medo de que se convertesse em história pornográfica), acabou durando anos, primeiro com o autor vangloriando o filme e, mais tarde, em 1984, o rechaçando e dizendo que se tratava de “infâmia” contra sua história. Curioso, neste ponto, é ressaltar que Borges era praticamente cego e que, a rigor, nunca vira o filme, nem numa vez, nem em outra. Ouvira, somente. Na primeira audição, até se emocionou. Na segunda, odiou.
Para além disto, sobram ainda intrigas sobre o enredo do filme, taxado por muitos (e, em algum momento, pelo próprio autor do conto originário) como história de homossexuais, no que Christensen se defendia arvorando a citação que Borges faz, em seu escrito, à amizade de David e Jonathan, no Segundo Livro dos Reis, de que “certas amizades são mais fortes que o amor das mulheres”.
Vejamos os depoimentos colhidos em jornais da época que dão conta de testemunhar todas essas problemáticas.

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Christensen lembra citação bíblica de Borges
Correio do Povo, 18 de junho de 1980


Quando se ouve os depoimentos da atriz Maria Zilda sobre sua personagem em A Intrusa, a tendência é dar-lhe toda a razão. Tudo muda de figura a partir do momento em que o diretor do filme, Carlos Hugo Christensen, mostra que o conto de Borges é precedido por um texto bíblico que Borges recomenda ao leitor e que aparece transcrito nas cenas iniciais do filme. Trata-se do Versículo 26 do capítulo I do Segundo Livro dos Reis da Bíblia Católica onde Davi diz: " me aflijo por ti, Jonathan, irmão meu; carinhoso e encantador foste comigo: teu amor por mim foi maravilhoso, superior ao de qualquer mulher ". Para  Christensen, essa citação adianta ao leitor de Borges e ao seu espectador que o afeto entre os dois irmãos não precisa ser, necessariamente, considerado como homossexualidade.

O diretor de A Intrusa diz que tudo pode se tratar somente de uma amizade profunda, considerando que "a amizade é tão misteriosa quanto o amor". Ele adianta quê o conto foi lido por grande parte da população de Uruguaiana, das quais 40 pessoas estiveram em Gramado para ver o filme. "Aceitaram sem problemas o conto, onde a mulher aparece como esta 'coisa' que só serve para cama e cozinha e nada mais. A situação da mulher no fim do século passado aparece com características selvagens, mas ainda existe, embora de forma diferente. Em zonas como Uruguaiana, o peão raramente se casa e mantém-se um solitário até hoje". Uma expressão significativa de A Intrusa reforça isso: " gaúcho que pensa em uma só mulher por mais de 5 minutos é maricão ".

Christensen afirma que, com a adoração que tem pelo que Borges escreve, "jamais permitiria a deturpação do conto dele". Além disso, como diretor ele não discute com os atores, deixa claro que o filme é seu e deixa ao intérprete a possibilidade de aceitar ou recusar apenas.

O direito de Christensen filmar o conto de Borges foi obtido junto ao próprio autor, significando sua vitória sobre cinco concorrentes estrangeiros que também queriam filmar A Intrusa: "Borges temia que transformassem seu conto em pornografia e preferiu um cineasta latino-americano". De resto, considera que seu filme, feito sem moralismos, "é de uma violência moral maior que Os Sete Gatinhos".


Borges critica a adaptação de conto seu para a tela

O escritor argentino Jorge Luis Borges criticou duramente a versão cinematográfica de seu conto "A Intrusa", realizada no Brasil em 1981, por seu compatriota, Carlos Hugo Christensen, a quem acusou de dar um sentido comercial à obra. Borges qualificou o filme de "infâmia", pois o diretor transformou a história numa relação homossexual, escamoetando o sentido do conto. "A Intrusa" conta a história de dois irmão que viviam no Rio Grande do Sul por volta de 1890. Cristián, o mais velho, traz uma mulher ao rancho que ambos partilham, enquanto Eduardo faz o mesmo. A mulher trazida por este, entretanto, permanece ali apenas um dia, pois logo percebe que deseja a de Cristián. Os dois irmãos dividem então a primeira mulher, vendendo-a depois a um bordel. A história termina com um duelo entre Cristián e Eduardo.

“A Intrusa” e os desafios da adaptação



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            Carlos Hugo Christensen foi, em relação à “Intrusa”, um de seus últimos filmes, um obstinado. Conhecedor da obra de Jorge Luís Borges, seu conterrâneo argentino, participou de um pequeno litígio prévio para adquirir os direitos do texto e de um posterior a este, com estrangeiros que estavam interessados em comprá-los de si, para realizar a adaptação no exterior. Christensen, como sabemos, não os vendeu. Queria fazer este filme.  
            E o fez, mesmo à custa dos espinhosos problemas que se decorreram na produção. Os textos abaixo são extraídos de jornais que alardearam o filme na época da estreia e que dão conta dos relatos que o artista nos lega sobre as dificuldades da adaptação, principalmente na reconstrução do cenário dos pampas que remontam o século retrasado.
            O mais impressionante nisto é o rigor que o diretor empregou nesta reconstrução histórica, que parece acima do comum: chegou a construir casas inteiras como as do fim dos anos 1890, e com pedras de edifícios realmente erigidos na época. Para imitar o vento mítico do minuano, usou dois aviões estrategicamente posicionados.
            Além dos relatos de Carlos Hugo Christensen, compilamos ainda um outro depoimento, de Ubirajara Raffo (que trabalhou em diversos momentos da produção), que dá conta das dificuldades impostas pelo realismo pretendido pelo diretor e pelos que lhe auxiliaram. Os testemunhos foram extraídos do Correio do Povo e do Estado de Minas, ambos do ano de 1980.

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Entrevista a Carlos Hugo Christensen
Correio do Povo, 4 de abril de 1980

            “Correio do Povo – A história de ‘A Intrusa’ exerceu algum fascínio especial sobre você, ou foi apenas uma questão de oportunidade?
           
            Carlos Hugo Christensen - A chance de levar ao cinema essa pequena obra-prima representa para mim o mais precioso presente que recebi em toda a minha carreira. Realizei 'A Intrusa' com toda a paixão que sinto pela obra de Borges, da qual sou admirador confesso e que conheço profundamente. Aliás, poderei não vir a ser um grande intérprete de Borges mas, tranquilamente, sei que sou um dos maiores conhecedores de sua obra. Não me limitei a narrar com imagens o belo conto, procurei também, sem prejudicar seu ritmo, colocar vários símbolos que marcam constantemente a literatura de Borges.

CP - A história de 'A Intrusa' passa-se em 1890, em Uruguaiana, no Sul do país. De lá para cá, muita coisa deve ter mudado ali. Você encontrou dificuldades na ambientação da história, por causa disto?

CHC - 'A Intrusa' foi um filme cheio de problemas, que começaram a surgir desde a época de sua preparação, no inverno de 78. Durante 60 dias,em Uruguaiana, eu, meu assistente Francisco Marques e Daniel Carvalho, o chefe da produção, planificamos a futura filmagem. Como em Uruguaiana,pouco ou quase nada restou das construções do século passado, foi necessário levantar todos os cenários, para filmar dentro e fora deles. Escolhidos os lugares, estudados os cenários a serem levantados e as indumentárias, tarefa de minuciosa pesquisa na qual contamos com a colaboração valiosa do folclorista e pesquisador Ubirajara Raffo Constant - que, junto com Orígenes Lessa, colaborou nos diálogos -, tivemos que enfrentar outros tipos de problemas, como a presença constante de eucaliptos na paisagem.

CP - 'Minuano', temido e conhecido vento dos pampas, tem presença significativa no conto de Borges. Aliás, parece ser um dos elementos mais fortes, numa das cenas mais importantes da história. Como você pôde reproduzi-lo?

CHC - A reprodução do Minuano, o Destruidor vento dos pampas, significou outro sério obstáculo a vencer; foi necessário improvisar uma pista de pouso no meio do campo, perto do cenário principal, para que pudessem pousar dois aviões, sem os quais teria sido impossível imitar um dos fenômenos mais gaúchos da natureza: o vento pampeano. E, para mencionar apenas um dos imprevistos, registre-se o fato de que o rio Uruguai subiu 11 metros, numa época em que as enchentes são raras, alagando os campos e paralisando as filmagens por 3 semanas. Há uma superstição do pessoal de cinema que diz que filme que enfrenta problemas durante as filmagens é sucesso garantido: espero que ‘A Intrusa’ confirme essa crença”.

Ubirajara Raffo e o problema dos eucaliptos
Estado de Minas, 24 de agosto de 1980

"'O mais difícil - diz Ubirajara - foi o cenário da época. Desenhei um rancho de pedra típico do fim do século passado. Ranchos iguais aos do tempo da história desapareceram da paisagem Gaúcha. A saída que encontramos foi construir um, para a qual contamos com o auxílio de Hermes Silva Pinto, que nos forneceu as pedras de uma mangueira de seus campos, com mais de cento e cinquenta anos. E assim, pedra por pedra, nasceu o rancho dos irmãos Nielsen. Também foram construídos o galpão, o poço de água, o forno, um curral, de pau-a-pique e outras coisas que formavam o cenário de um rancho'.
Problema ainda maior do que reconstruir um rancho de pedras empilhadas com paredes de 1 m de espessura, foi evitar o enquadramento dos Eucaliptos, árvores alienígenas que hoje tomam conta das coxilhas.
'Originária da Austrália, essa árvore não existia no Rio Grande do Sul na época da história - informa Ubirajara. Novamente Hermes Silva nos socorreu: em seus campos havia um grupo de umbus - árvore nativa dos Pampas - no alto de uma coxilha. Lá foi edificado o rancho do Nielsen".

Entrevista com Carlos Hugo Christensen



O Cronista da Cidade Amada
Valério M. de Andrade



Carlos Hugo Christensen está no Brasil há 12 anos. É argentino de nascimento, brasileiro por vocação e carioca de coração.

Já viveu na Europa, Estados Unidos, vários países da América do Sul. Mas foi o Rio de Janeiro que o conquistou de forma absoluta e definitiva. Ao receber o título de Cidadão c
Carioca, afirmou: "Não se pode escolher uma cidade para nascer, mas se pode escolher uma cidade para morrer: já fiz minha escolha".

O fracasso tem sido quase um ausente em sua carreira. Foi no Brasil, tendo o Rio como fonte de inspiração, que Christensen alcançou o clímax de uma longa jornada com sucesso. De sua filmografia, composta de 38 títulos, os últimos 8 foram realizados aqui.

O êxito invulgar obtido por filmes como "Meus Amores no Rio", e "Esse Rio que Amo" dão a Carlos Hugo Christensen a condição de vitorioso no seu diálogo com o público. E um título em nosso cinema – o de cronista da cidade amada.


Duília


A crítica carioca apontou "Viagem aos Seios de Duília" como seu melhor filme feito no Brasil. Como você o encara?

– Devo dizer que concordo com os críticos. Em "Duília" encontrei um dos temas mais difíceis que já enfrentei. Sempre que faço adaptação de uma obra literária para o cinema, procuro ser fiel ao seu espírito. A fidelidade é fundamental: qualquer traição neste sentido deixa de justificar a eleição do tema. O filme deve ser a complementação da obra original. Tenho a certeza de que consegui manter intacto o espírito do conto de Aníbal Machado em "Duília".


Cidade Amada


Em seu próximo filme, “Crônica da Cidade Amada”, você voltará a focalizar o Rio de Janeiro. O que lhe leva a filmar mais uma vez no Rio?

  Antes de mais nada: o tema é extremamente grato para mim. Há doze anos, quando aqui cheguei, atravessava um período difícil da minha vida: Perseguido pelo peronismo, fui obrigado a deixar a Argentina e tive de recomeçar minha vida profissional numa cidade estranha. Entretanto, em nenhum outro lugar senti tanta alegria de viver e estive tão perto daquilo que achamos ser a felicidade, como no Rio.


Oscarito


O nome de Oscarito consta no elenco de “Crônica da Cidade Amada". O que o levou a reeditar seu nome?

– Sempre considerei Oscarito um ator – um excelente ator – e não apenas um cômico sem consequências. Se ele fez muitos filmes de padrão inferior, a culpa não era sua: cabe aos diretores e ao regime de produção vigente na época. Acredito que Oscarito, num filme que esteja pelo menos à altura de suas qualidades, voltará a ser a grande atração que sempre foi para o público.


Público e Comunicação


Muito se tem falado no problema do autor de filmes com público. Você se sente entre aqueles que tem este poder de comunicação?

– Se o poder de comunicação entre o cineasta e o público é medido pelo sucesso dos filmes, posso dizer que na maioria dos meus filmes ouve o diálogo com o público. Poucas vezes fiquei limitado ao monólogo.


Cinema e Cultura


O cinema é um veículo válido para a formação cultural de um povo?

– Acho o veículo mais poderoso que existe. Em virtude dos problemas industriais, o cinema não tem cumprido como devia a sua missão cultural. Acho que o governo deveria estimular e ajudar os homens que querem fazer essa contribuição cultural.


Cinema Mundial



Qual o melhor cinema da atualidade e por que?

– O italiano. É o cinema mais preocupado com os problemas do homem moderno. E também o mais profundo, brilhante e rico de ideias. Na Itália encontram-se diretores e cenaristas da atualidade. Uma equipe formidável que derrota os valores individuais de outros cinemas.

“Cinema Novo"


Como situa o “Cinema Novo”?

– Em primeiro lugar, não creio que haja realmente novo cinema no Brasil. Os membros –deste movimento agrupados sob o sugestivo rótulo de cinema novo – estão apenas fazendo o que sempre deveria ter sido feito: filmes de méritos artísticos. O que se verificou foi o súbito progresso em relação ao baixo padrão das chanchadas, e o advento de uma maior preocupação para com os problemas sociais do Brasil. Entretanto, muito antes, do nascimento do "cinema novo", já havíamos produzido filmes do valor de "O Cangaceiro" – obra muito superior a quase totalidade dos títulos batizados sobre o nome de "cinema novo".


O Grande Problema


Quais são as razões da atual retração do público em relação ao cinema brasileiro?

– Nos últimos tempos tem sido exibido filmes desprovidos da menor preocupação artística e sem qualquer atração popular. São fitas de amadores, elaboradas sob o signo da improvisação e da displicência, que não deveria ter saído das prateleiras. Filmes de méritos – como Vidas Secas – foram soterrados pela avalanche dos subfilmes. Em consequência – após sucessivas decepções – o público tornou-se extremamente cauteloso e descrente. O nosso problema, no momento, é reconquistar a confiança do público através de bons filmes. Independente disso, ainda tem muita gente que não vê um filme brasileiro, pelo simples fato de ser brasileiro. E não é fácil acabar com esses vestígios de uma mentalidade ainda colonial.



Futuro



Como vê o futuro para o cinema brasileiro?

– Um futuro maior do que os mais otimistas posso imaginar. Agora mesmo, com todos os seus altos e baixos considero o cinema brasileiro o mais importante e, sob diversos aspectos, superior à Argentina e México. O cinema brasileiro tem enormes reservas;  homens de talento à espera de uma hora propícia; uma literatura rica e quase virgem; uma enorme variedade de tema; bons atores; e um povo que, a exemplo do italiano, tem uma intuição primitiva para representar. É talvez o único cinema do mundo que consegue ainda o milagre de produzir filmes sem ajuda e proteção governamental. O cinema brasileiro tem uma personalidade definida. Enquanto os cinemas argentino e mexicano filmam com frequência obras estrangeiras, não consigo lembrar um filme brasileiro que tenha sido adaptado de livro ou peça estrangeira. Diante de tudo isso, não posso deixar de crer no futuro do nosso cinema.