segunda-feira, 24 de julho de 2017

Manifesto do Novo Cancioneiro (1963)

           

             O texto que segue é uma tradução ao Manifesto del Nuevo Cancionero, texto historicamente importante para a história da música latino-americana e, mais especialmente, argentina. Se se trata de um manifesto com algum cunho político oculto (o de conter o imperialismo cultural americano), este acabou servindo, se é que de fato existiu, para os propósitos estéticos de seus idealizadores, sem nunca ocorrer o contrário (a arte não se submetia à política, mesmo que esta última, em seus propósitos, às vezes a favorecesse). Trata-se, antes, de uma tentativa de preservação de valores nacionais e da conservação, aberta a vanguardas, numa hermenêutica de continuidade, de pressupostos estéticos já bem fundamentados e característicos da música latina. Trata-se, portanto, de uma tentativa de burilar, dentro dos limites da tradição, os artifícios estabelecidos por esta mesma tradição, a fim de uma arte erguida em bases sólidas, mas não estagnada.

            Se sabemos que o arcabouço musical luso-hispânico (ou seja, ibérico) e seus descendentes (a música dos países colonizados por Espanha e Portugal) acarretaram na melhor música popular da qual temos notícia (e, sobre os motivos disso, explicarei numa outra ocasião), o Manifesto do Novo Cancioneiro foi, por assim dizer, uma tentativa de conservar e aprimorar elementos da melhor música do mundo, sem permitir que esta se tornasse nem item exótico de cartão postal, ao manter suas raízes folclóricas, nem que se deixasse degenerar pelas forças externas que se vinham impondo àquela altura (a influência americanista).       


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Manifesto do Novo Cancioneiro



A busca de uma música nacional de conteúdo popular foi e é um dos mais caro objetivos do povo argentino. Seus artistas, desde os alvores de uma expressão popular própria, tentaram, com distinta sorte, incorporar a diversidade de gêneros e manifestações das quais dispunha sua sensibilidade, com o propósito de cantar a todo o país.

Já Carlos Gardel, no início dos modernos meios de difusão, fez incursões como autor e intérprete tanto no gênero nativo, onde começou sua relevância, como no gênero típico cidadão, que encontrou no tango sua forma mais completa de expressão. Outros gêneros, populares até então, como a valsa, a polca, etc., não se mostraram tão eficientes para traduzir o modo de ser e sentir das amplas camadas populares do país crescente.

Na busca de sua expressão, o artista popular adotou e recriou ritmos e melodias que, por seu conteúdo e sua forma, se adaptam mais inteiramente ao gosto e aos sentimentos do povo. Essa interrelação entre o artista criador e o povo destinatário de suas obras deu nascimento ao tango que, penetrado do espírito vivo das massas, seria desde então a canção popular por definição, dada a proeminência cultural, política e social que, desde então, Buenos Aires teria sobre o resto do país. A deformação geo-sociológica que este feito político provocou em todas as ordens de vida do país devia alcançar também a música nacional de inspiração popular.

Se relega ao interior o homem, a paisagem e a circunstância histórica e o país acentua sua fachada portuária, unilateral e, portanto, muitas vezes epidérmica. Porque durante muitas décadas o país foi isso: um rosto sem alma, onde até o tango, com sua palpitante crônica dolorosa (Contursi, Flores, De Caro, Los Caló, Discépolo, Manzi e tantos outros facilmente identificáveis), reclamará em suas noites insones o cerceamento do espírito nacional e a amputação feroz do país total.

É que o tango, refém de sua boa sorte, já havia caído do “anjo popular” para as mãos dos mercadores e era forte moeda de troca para a exportação turística. Foi aí que o condenaram a repetir-se em si mesmo, até estereotipar um país de cartão postal, “farolito mediante”, alheio ao sangue e ao destino de sua gente.

E, então, se perpetrou a divisão artificial e asfixiante entre cancioneiro popular cidadão e cancioneiro popular nativo de raiz folclórica. Interesses escusos alimentaram, até a hostilidade, esta divisão que se faz mais acentuada em nossos dias, levando a autores, intérpretes e público a um antagonismo estéril, criando um falso dilema e ocultando a questão principal que agora está plantada com mais força que nunca: a busca de uma música nacional de raiz popular, que expresse o país em sua totalidade humana e regional. Não por meio de um único gênero, o que seria absurdo, mas pela ocorrência conjunta de suas variadas manifestações (quanto mais formas de expressão tenha uma arte, mais rica será a sensibilidade do povo ao qual ela se dirige).

Não há, pois, para o homem argentino, um dilema entre tango e folclore, música cidadã e música regional, tipismo ou nativismo. O dilema real do homem argentino é, no plano de seus interesses, ou o desenvolvimento vital de sua própria expressão popular e nacional na diversidade de suas formas e gêneros, ou estancamentos infecundos diante da invasão das formas decadentes e descompostas dos híbridos forâneos. Há país para todo o cancioneiro. Só se falta integrar um cancioneiro para todo o país.


Uma tomada de consciência: o auge da música nativa


Nos momentos atuais, Buenos Aires e todo o país assistem a um poderoso ressurgimento da música popular nativa, motivada pela inquietude de interpretar este fenômeno. Há quem se incline a considerar este ressurgimento como uma moda, à maneira de tantas outras que eventualmente assolam a grande capital cosmopolita, porto de todos os portos.  Mas uma análise mais atenta de nossa realidade não pode senão nos afastar desta hipótese. Nós afirmamos que este ressurgimento da música popular nativa não é um feito circunstancial, mas uma tomada de consciência do povo argentino.

No que diz respeito a Buenos Aires, apontamos este fato: devido ao auge industrial que se inicia radicalmente na Segunda Guerra Mundial, a capital o aporte massivo de imensos contingentes humanos do interior do país. Eles traziam, junto à esperança de uma vida melhor na grande cidade, suas velhas guitarras e a magia de suas paisagens natais. Posteriormente, seria o mercado quem, cada vez mais, exigiria música nativa e que acabaria por impor ao homem e à mulher portenhos uma paixão inquietante por esse imenso e abissal país continente. Todo o país começou a ver-se neste cancioneiro, suspeitando que, atrás de suas costas, um mundo cativante e desconhecido havia sido posto em movimento.

O auge da música folclórica é um sinal de maturidade que o argentino conquistou a partir do conhecimento do país real. São os primeiros sintomas massivos de uma atitude cultural diferente. O país existe. O povo do interior acabou por realizar a terceira fundação de Buenos Aires, agora a partir de dentro. A consciência deste “ser no país” é irreversível e suas implicações mais profundas, das quais o cancioneiro nativo é só a forma mais visível, informarão e conformarão no futuro o seu destino histórico. Porém, este descobrimento da terra, esta valorização cultural nova que tentamos desentranhar, deve ser ampliada e aprofundada, sob pena de que se perda no tráfego de interesses criados e paralisantes. Se para muitos este fato é somente uma distração ou um modo de ir mais além de suas aptidões imediatas, o artista criador com vocação nacional e raiz popular deve burlar esta armadilha.

Que não roubem nem do artista e nem de seu povo esta tomada de consciência é o que propõe o NOVO CANCIONEIRO.


Raízes do Novo Cancioneiro


Até o advento de Buenaventura Luna e Atahualpa Yupanqui, o cancioneiro nativo se manteve numa etapa de formas estritamente tradicionalistas e recompiladoras. Se versava sobre o tema tal e qual havia sido achado: em sua versão primária com poucos e esporádicos aportes criadores que, quase sem exceção, se esforçavam por respeitar o cânon tradicional.

Deste ciúme pelas formas originárias e puras, advirão logo os vícios que querem fazer do cancioneiro popular nativo um solene cadáver.

Em seu tempo, quando o principal era a difusão da canção nativa, este estilo e este conceito teve uma inegável justificativa e este labor de tantos abnegados curadores e difusores da canção vernácula merece de nós o mais alto respeito. E então, o cancioneiro precisava de um lugar profundo e visível na sensibilidade de amplos setores do país; era natural e lógica a insistência em mostrá-lo tal e qual era ou havia sido sua origem. Mas foi a estagnação neste estágio que o degenerou em um folclorismo de cartão postal, do qual ainda sofremos as remanescências, sem vida nem vigência para o homem que construía e modificava dia a dia sua realidade. É com Buenaventura Luna, no literário, e com Atahualpa Yupanqui, no literário musical, que se inicia o impulso renovador que amplia seu conteúdo sem ferir sua raiz autóctone. A este achado, se somará logo o aporte de músicos, poetas e intérpretes das novas gerações que, clamando pelo desmonte destes entraves acerca da sensibilidade popular, protagonizaram o ressurgimento atual. Tanto Luna como Yupanqui surgem das suas regiões do país mais ricas em expressões musicais: o Norte e o Cuyo. Estes, sem ser os únicos, são os mais representativos percussores, pela qualidade e pela extensão de suas obras e por sua vocação de expressar de modo renovado a canção popular nativa, o que acaba por proporcionar a origem do NOVO CANCIONEIRO.


O que é o Novo Cancioneiro?


O NOVO CANCIONEIRO é um movimento literário-musical dentro do âmbito da música popular argentina. Não nasce por ou como oposição a nenhuma manifestação artística popular, mas como consequência do desenvolvimento estético e cultural do povo e é sua intenção defender e aprofundar este desenvolvimento. Tentara assimilar todas as formas modernas de expressão que ponderem e ampliem a música popular e é seu propósito defender a plena liberdade de expressão e de criação dos artistas argentinos. Aspira renovar, em forma e conteúdo, nossa música, para adequá-la ao ser e ao sentir do país de hoje. O NOVO CANCIONEIRO não desdenha das expressões tradicionais ou de fonte folclórica da música popular nativa, pelo contrário, se inspira nelas e cria a partir de seu conteúdo, mas não para furtar do tesouro do povo, senão para devolver a esse patrimônio o tributo criador das novas gerações.


A que se propõe o Novo Cancioneiro?


O NOVO CANCIONEIRO se propõe a buscar a riqueza criadora dos autores e intérpretes argentinos, à integração da música popular na diversidade das expressões regionais do país.

Quer aplicar a consciência nacional do povo, mediante novas e melhores obras que a expressem. Busca e promove a participação da música típica popular e popular nativa nas demais artes populares: o cinema, a dança, o teatro, etc., em uma mesma inquietude criadora que contenha o povo, sua circunstância histórica e sua paisagem. Neste sentido, adere à inquietude do Nuevo Cine, como também a toda tentativa de renovação que tente testemunhar e expressar pela arte nossa apaixonante realidade, sem concessões nem deformações.

Rechaça todo regionalismo fechado e busca expressar o país todo na ampla gama de suas formas musicais. Se propõe a depurar dos convencionalismos e tabus tradicionalistas à exaustão, o patrimônio musical tanto de origem folclórica quanto de origem popular.

Alentará a necessidade de criar permanentemente formas e procedimentos interpretativos, assim como obras de genuína identidade com o país de hoje que enriqueçam a sensibilidade e a cultura de nosso povo.

Desfará, rechaçará e denunciará ao publico, mediante análise esclarecedora em cada caso, toda produção grosseira e subalterna que, com finalidade mercantil, tente depreciar tanto a inteligência quanto a moral de nosso povo.

O NOVO CANCIONEIRO acolhe em seus princípios a todos os artistas identificados com seus desejos de valorizar, aprofundar, criar e desenvolver a arte popular e neste sentido buscará a comunicação, o diálogo e o intercâmbio com todos os artistas e movimentos similares do resto da América.

Apoiará e estimulará o espírito crítico, a partir de círculos artísticos e organizações culturais destinadas ao nosso acervo, para que o “culto pelo nosso” deixe de ser uma mera distração e se canalize em uma compreensão séria e respeitosa de nosso passado e de nosso presente, mediante o estudo e o diálogo formativo de nossas juventudes.

O NOVO CANCIONEIRO lutará para converter a presente adesão do povo argentino ao seu canto nacional em um valor cultural inalienável.

Afirma que a arte, como a vida, deve estar em permanente transformação e por isso busca integrar o cancioneiro popular ao desenvolvimento criador do povo todo para acompanha-lo em seu destino, expressando seus sonhos, suas alegrias, suas lutas e suas esperanças.



TITO FRANCIA – OSCAR MATUS – ARMANDO TEJADA GOMEZ – MERCEDES SOSA – VICTOR GABRIEL NIETO – MARTIN OCHOA – DAVID CABALLERO – HORACIO TUSOLI – PERLA BARTA – CHANGO LEAL – GRACIELA LUCERO – CLEDE VILLEGAS – EMILIO CROSETTI – ADUARDO ARAGÓN.




Tradução: Yuri Ramos


sexta-feira, 21 de julho de 2017

Alguns Toureiros - 3 ou 4 M's




        MANOLETE



Alguns Toureiros


A Antônio Houaiss


Eu vi Manolo Gonzáles
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.

(João Cabral de Melo Neto)



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MANET



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MAMOULIAN




segunda-feira, 10 de julho de 2017

Aos Atores Brasileiros, por Otto Maria Carpeaux




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Aos Atores Brasileiros



Será comemorado este ano o cinquentenário da morte de Henrik Ibsen. Como a participação do Brasil, sugeri a realização de um festival Ibsen, incluindo obrigatoriamente representações de Peer Gynt, Espectros, Inimigo do povo, Pato selvagem e Construtor Solness. Facultativas: Os pretendentes da coroa, Brand, A Aliança da Mocidade, Colunas da sociedade, Casa de bonecas, Rosmersholm, Hedda Gabler, Jonh Gabriel Borkman; e não seria de mais.

Sem dúvida, a ideia encontrará resistência. Um ator brasileiro, homem lido e culto, dizia-me, certa vez: “Não desprezo Ibsen; mas prefiro teatro do meu tempo”. É por isto mesmo que este artigo se destina especialmente aos atores brasileiros.

Afirma-se que os atores de hoje já não sabem dizer versos. Mas tenho, na verdade, dúvidas quanto à prosa. É possível que os atores não acertem o estilo da poesia moderna; mas esta não se destina a ser recitada em voz alta. Muito sabem, porém, nossos atores acertar a expressão retoricamente fortalecida dos sentimentos, assim como a representa o verso da tragédia clássica, shakespeariana e schilleriana. É muito mais difícil dizer prosa: não a prosa poética de certo grupo de peças modernas, mas prosa comum, isto é, ritmada conforme as leis da lógica. É este o caso de Ibsen. Seu estilo não serve à expressão de sentimentos; também é deliberadamente anti-retórico, imitando a linguagem da gente comum na vida de todos os dias. Sua língua é simples meio de comunicação entre pessoas que discutem. Mas essas discussões são os núcleos de suas peças. Toda a ação dramática só serve para chegar-se a essas grandes discussões teóricas. Não são cenas retóricas. Os atores não devem dizer assim como os advogados pleiteiam perante o tribunal; nem assim como os réus e acusadores que manifestam reações psicológicas. Tudo isso só enfraqueceria a força da lógica ibseniana. Aquelas discussões antes se parecem com “cross-examinations”, interrogatórios dialéticos através dos quais se revelam as contradições intrínsecas das teses propostas para solucionar problemas: os famosos “problemas de Ibsen”.

Eis a raiz da resistência. Nora já não tem o direito para reivindicar no palco os direitos da mulher, porque a mulher do nosso tempo já tem todos os direitos. Os chamados problemas de Ibsen seriam preocupações da “pequena-burguesia” e dos intelectuais burgueses do fim do século XIX. Seriam problemas obsoletos. As nossas preocupações teatrais de hoje já não cabem na estreiteza do teatro realista: são extra-sociais, supratemporais, universais e, por isso, poéticos. 

É verdade que até hoje aventureiros fundam alianças da mocidade para conquistar mandatos parlamentares; que os métodos parlamentares; que os métodos comerciais do cônsul Bernick ainda são os mesmos de muitos cônsules e não-cônsules; que o doutor Stockmann, se revelasse a verdade sobre a conjugação de interesses econômicos e forças políticas, já não seria simplesmente declarado inimigo do povo; destino muito mais sério o esperaria. Mas o fato de que certos problemas de Ibsen ainda não foram solucionados é resposta fraca. Porque superficial, àquela resistência. Certos problemas de Ibsen não podiam envelhecer, porque nunca existiam dentro das suas peças. Ainda voltaremos ao caso de Nora. E “Espectros” não gira em torno de Oswald e de sua doença mal diagnosticada, mas é a tragédia de Helene Alvina. Que não teve a coragem de tirar as conclusões do fracasso de seu próprio casamento. Mas não é desta maneira que se deveria demonstrar a “atualidade” de Ibsen. Atuais não são os seus temas, e sim suas atitudes. A “filosofia” de Ibsen só pode ser bem compreendida dentro do movimento filosófico que se decompôs o hegelianismo historicista. Ibsen está no meio entre o anti-romântico Goethe e o “futurista” Nietzsche, dois inimigos declarados da História. Como eles, o dramaturgo foi anti-passadista. Em suas peças são frequentes antíteses como “os velhos e os novos”, “coisas murchas e coisas novas”: metáforas como “espectros que querem voltar” e “estamos num navio que tem um cadáver a bordo”. Só em suas últimas obras parece determinista e fatalista, temendo a vitória dos mortos e das velhas convenções. Mas seu pessimismo não denuncia a ordem falha do Universo, Continua acusando falsas leis humanas modificáveis. Apenas chegara a reconhecer o poder da história, daquela que é negada no drama poético, “supra-temporal”, de hoje. Mas não adianta negá-la. Ibsen é mais atual que seus adversários.

Só se lhe rejeitariam, como obsoletas, as “teses”. Nora não tem, realmente, o direito de reivindicar mais do que já obteve, sob pena de transformar-se em uma daquelas mulheres-dominadoras que Strindberg denuncia; depois, aliás, que Ibsen já as denunciara em “Hedda Gabler”. Não há, porém, entre Hedda Gabler e Casa de bonecas nenhuma contradição. Pois o tema de Casa de bonecas não é o feminismo; o enredo não pretende demonstrar “teses”, mas expor certos personagens à prova por certos acontecimentos. Só para isso serve o enredo. Só para isso serve o ambiente, essas pequenas cidades nórdicas e estreitas casas burguesas que são outro motivo de reação anti-ibseniana. O diretor de cena saberá “atualizá-las”. E não são tão estreitas assim; pois cada vez quando no palco se abre uma porta para deixar entrar outro personagem, acreditamos sentir o ar fresco e salgado do mar lá fora, do oceano que é o mesmo naquelas e nestas paragens.

Estreito também parece o palco de Ibsen, porque está tão densamente povoado. Há grupos compactos, ligados pelo amor e pelo ódio, como o grupo de Rolmersholm: Rosmer, o intelectual hamletiano; Rebeka, má e inteligente; Kroll, o conservador interessado; Mortensgard, o radical menos fidedigno; e Brendel, o idealista que acabara na sarjeta. Há os “duos”: Nora e Helmer, Helene Alving e o tímido pastor Manders. Enfim, há os isolados: Solness, envelhecendo e ainda ambicioso; Hedda Gabler, a histérica pseudo-poética; Hjalmar Ekdal, o fracassado que posa perante si próprio, o “caráter” mais original de todo o teatro pós-shakespeariano; o Dr. Stockmann, Alceste e Timon ao mesmo tempo, mas personagem cômico, porque é otimista; Bernick, menos rico que inescrupuloso; o advogado Stensgard, fundador da Aliança da Mocidade; Brand, o homem da vontade de ferro, e Jarl Skule, sem vontade porque cético; e há aquele resumo de tudo o que é nobre e baixo na natureza humana: Peer Gynt; e os inúmeros comparsas que os rodeiam, uma assembleia de espectros que pedem sangue para voltar à vida como as sombras dos defuntos pediram a Ulisses. Gritam por serem representados... Façamos o Festival Ibsen. Os atores terão de agradecer, muitas vezes, às palmas da plateia. Gratos também serão os diretores, os cenógrafos. Grato também ficará o homem na bilheteria.





(Otto Maria Carpeaux, Revista de Teatro SBAT nº 291)