domingo, 28 de maio de 2017

A Influência de Verdi na Música Nacional, por Arthur Azevedo






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O texto que segue é uma crônica de Arthur Azevedo, publicada em 1901, num período bem próximo à morte de Giuseppe Verdi.

É impressionante que até hoje muitos não consigam compreender, como este texto compreende, numa espécie de retrospectiva histórica e etnológica da influência verdiana na música popular nacional, a capacidade de comunicação das obras deste homem (e, daí, a sua genialidade estética), que conseguiram se encrustar nas mais diversas almas e nas mais diversas culturas.



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Realizou-se anteontem no S. Pedro, em homenagem ao divino Verdi, um espetáculo, a que não pude assistir, apesar de ter sido amavelmente convidado pelos empresários Fuffanelli & Cia.

Até anteontem era o Rio de Janeiro, talvez, a única cidade importante do mundo civilizado que não manifestara ainda, por qualquer forma, o pesar causado pelo desaparecimento do grande compositor.

Entretanto, com essa manifestação não se deve contar, por ter partido dos próprios compatriotas do glorioso velho. Eu quisera que os fluminenses exprimissem por qualquer meio a sua admiração e o seu respeito.

Paris vai levantar uma estátua a Verdi. Não exijo que o Rio de Janeiro faça o mesmo; desejo apenas que não deixe passar em silêncio o grande morto.
           
            É inexplicável essa indiferença, porque Verdi é o compositor estrangeiro que mais popularidade tem gozado no Brasil; as suas melodias penetraram, como sol, nas mais recônditas paragens da nossa terra; no norte alguns trechos do “Trovador” e da “Traviata” se confundiam com as toadas anônimas da tradição musical.
           
         Quando ouvi pela primeira vez, no Provisório, há 27 anos, o coro dos ciganos, da “Traviata”, fiquei muito admirado de ouvir, nota por nota, a música sentimental de uma das mais saudosas modinhas que me embalaram na infância.
           
          Verdi, que pertencia a todos os povos latinos, tinha afinidades flagrantes com o nosso temperamento e a nossa índole artística. A sua música dizia com a nossa natureza exuberante e cálida. Nenhum outro compositor poderia ser tão compreendido por nós. Daí o sucesso que obtiveram no Brasil todas as suas óperas, inclusive aquelas que em outros países não foram ouvidas com grande entusiasmo.
         
       São Paulo, quem em questões de arte toma sempre a dianteira à capital federal, já pagou a sua dívida à memória de Verdi; quando nos desobrigaremos nós, fluminenses, desse dever de gratidão?  



(Arthur Azevedo, em “O Paiz”; 14 de março de 1901)

domingo, 14 de maio de 2017

Freire Júnior, por Modesto de Abreu








Este artigo merece uma pequena introdução: é uma publicação da falecida Revista de Teatro SBAT, que, ao que me aprece, fazia certo sucesso nos meios teatrais, principalmente entre os anos 50 e 70 do século passado. Era uma muito boa publicação, que continha de tudo um pouco, desde que relacionado com o teatro: música, balé, ópera, cinema...

Neste caso, o texto é sobre teatro mesmo, mas tratando de uma figura especialíssima, talvez mais lembrada (quando lembrada) por sua face de compositor: Freire Júnior. O artigo é um tanto quanto biográfico e escrito por um homem que conviveu lado a lado com Freire, Modesto de Abreu e, por isso mesmo, é interessante por dar conta de nos esclarecer alguns detalhes da vida e da obra de um homem que parece hoje completamente desconhecido no Brasil, mesmo sendo autor de algumas obras-primas da música popular nacional (e aqui incluo a tetralogia Deusa - Santa - Pálida Morena - Malandrinha).

É justamente pela total ignorância que sofre o nome de Freire Júnior hoje, principalmente pelos que se pretendem entendedores da história da música popular nacional, que me motivei a replicar aqui este artigo. Espero que desperte o interesse de quem quer que seja sobre a obra deste grande autor.  



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A SBAT da “Velha Guarda”
XI
Compositores – Autores



            Entre os músicos de teatro, numerosos foram os que ao mesmo tempo se consagraram como autores de poemas e textos literários.

            Nos gêneros de mais elevada categoria, Abdon Milanez compôs óperas e melodramas, com palavras e partituras de sua exclusiva autoria, além de dramas e comédias.

            Como autores de operetas, burletas e revistas, distinguiram-se Assis Pacheco e Sofonias Dornelas. E o nosso sempre moço Freire Júnior, um dos nomes mais gloriosos ao nosso teatro popular, vem sobressaindo, desde aqueles áureos tempos, como autor de revistas e burletas de grande e reiterado sucesso.

            Freire Júnior é um dos casos mais sugestivos de vocação teatral na história do teatro brasileiro. Músico sem teoria, foi durante anos o pianista de um dos nossos mais famosos clubes sociais do começo deste século. Seu prestígio de executor e improvisador fê-lo ingressar no rol dos nossos mais aplaudidos compositores de cançonetas da época. Daí para o teatro, foi um passo. E eis que o autor de uma burleta escrita para a companhia do São José o chama para seu colaborador musical. Freire aceitou a incumbência e tornou-se logo o “ai Jesus” dos autores de teatro musicado. Entre outros, tiveram-no como parceiro em suas obras Gastão Tojeiro e os irmãos Quintiliano.

            Convivendo com os meios teatrais, lendo os originais dos mestres e sugestionado pelos autores de histórias maravilhosas, logo sentiu Freire a tentação de escrever poemas para suas partituras, como já escrevia letras para suas composições populares. Sua primeira burleta, com libreto e música sua, foi O homem da Light, levada com êxito ao formoso teatrinho popular da praça Tiradentes. Foi isso antes de 1920. Era eu ainda aluno interno da Escola da qual Freire era o cirurgião-dentista. E, como ali fizéramos, tempos antes, algumas tentativas de amadorismo, foi a mim que o futuro autor de Luar de Paquetá confiou a tarefa de copiar a peça. Foi com o maior agrado que o fiz, e pude desde logo observar quão engenhosa era já a sua técnica e quão natural e espontâneo era o seu humor e o seu espírito crítico.

            Durante anos a fio, produziu Freire Júnior para as nossas melhores companhias dos gêneros populares, em teatros do centro e dos bairros, sobressaindo entre os seus melhores intérpretes Alda Garrido e, mais tarde, Oscarito.

            Quando, há perto de trinta anos, se criou o conselho deliberativo da SBAT, o nome de freire Júnior foi um dos mais cotados. Ingressou nele alguns anos depois, por volta de 1933, concorrendo com o Duque (Amorim Diniz) a uma vaga: já então sua bibliografia autoral ascendia a mais de 50 obras, contra apenas 12 do diligente e nacionalíssimo criador da “Casa do Caboclo”.

            Não foi porém somente na burleta e na revista que se acentuaram os pendores de escritor do nosso mais fecundo autor-compositor. Também na comédia ligeira se exerceu com mestria seu talento de escritor. E não apenas em Luar de Paquetá que o hábil burletista se converteu no exímio comediógrafo. Esse tirocínio veio-lhe desde os primeiros tempos em que começou a escrever para o teatro. De fato, entre as suas primeiras comédias, produziu ele Os milagres de São Roque, peça engraçadíssima, de trama vaudevillesca, mas com um leve fio emocional, escrita para os amadores do Clube Euterpe, ao tempo em que, juntamente com Hermes Fontes, encetava sua proveitosa moradia na pérola insular da Guanabara.

            O Clube Euterpe era um dos nossos melhores centros de amadorismo. Tinha excelente sede na estação de Engenheiro Leal, à altura de Cascadura, e ali trabalhavam amadores de mérito invulgar, como Eugênio Neto e os membros da família Anaruma. Foi também ali que fiz parte do meu tirocínio de autor incipiente.
            Tempo houve em que Freire Júnior se achou à frente do Pavilhão Democrata, da praça da Bandeira, do qual foi diretor artístico e empresário associado. Em tempos mais recentes, marcou época como produtor exclusivo par ao elenco do Teatro Recreio, com Walter Pinto.

            Como autor e compositor, não é exagero afirmar que Freire Júnior somente conheceu triunfos. Revezes, sofreu-os, pagando ao teatro esse tributo que sempre pagam os idealistas. Os que sofreu foram felizmente exceção fugaz. Não os devemos recordar, porquanto apenas as horas felizes devem ser lembradas, seguindo o sábio conselho de Álvaro Moreira: “as amargas, não”. 



(Modesto de Abreu, Revista de Teatro SBAT nº 291)