sábado, 16 de janeiro de 2021

The Undoing (2020)

                                            


         Ontem terminei de ver uma das minisséries do momento, The Undoing. Igual a muita coisa por aí, tem suas qualidades e seus defeitos, sem representar quase nada de remarcável, exceto por uma tensão que se instaura ao longo da história e que muito menos tem a ver com ela mesma do que com referências externas ao seriado.

          A questão central ali, a questão dramatúrgica, que impulsiona o drama, é a seguinte (e aí vem um spoiler): poderia uma persona como Hugh Grant marretar a cabeça de uma linda mulher por 11 vezes?
Ora, nós, o público, conhecemos Grant há mais de 30 anos. As figuras que ele encarnou até hoje são muito regularmente parecidas: de alta confiabilidade, ternas, muito engraçadas e sempre otimistas. Tão regulares nestes adjetivos que semrpe pensamos que já não são personagens em separado, mas que é a própria personalidade de Grant que molda a vida destas pessoas (algo que só acontece com grandes atores, ao contrário do que se possa pensar).

     É, a priori, portanto, inconcebível que Grant possa ser um assassino brutal em qualquer circunstância, na vida ou na arte. Não que não seja capaz de, teoricamente, representar um assassino. Mas, para isso, seria preciso se desvencilhar da sua persona, ou pelo menos reformulá-la, de modo que este dado brutal seja palatável a todos.

         The Undoing quer apostar numa mera reformulação, para poder explorar também o marketing que as formas mais conhecidas da atuação de Hugh possuem: todos os seus trejeitos tradicionais continuam e inclusive muitas frases do roteiro parecem ter sido feitas sob medida para a comicidade própria dos seus personagens. Há, também, com isso, uma outra tática: a de instigar a audiência a colocar-se como uma espécie de testemunha de defesa de Grant. Pois, já que, mesmo com todas as evidências de sua culpa, continuava o seu personagem a ser mais ou menos como o Hugh que conhecemos, poderíamos sempre duvidar da sua malícia.

       Toda esta publicidade, este marketing em torno da possibilidade nefasta acerca do nosso sempre herói, não passaria de uma grande enganação (como, de fato, não passa) se não houvesse algum diretor eficiente por trás desta história que: 1 - ou preparasse, em paulatinas mudanças climáticas, o público para aceitar a vilania do nosso mocinho romântico; 2 - ou o redimisse, no fim, para que comprovássemos sua idoneidade de sempre.

        Isto não acontece: inventam um final um tanto imbecil para revelar-se a sua culpa, algo deslocado aos supetões, em diversas esferas (de montagem, de direção de atores...), do contexto estético dos outros episódios. Em palavras grossas: uma forçação de barra para colocar goela abaixo do público que nós não podemos confiar em ninguém.

       Pois eu protesto: Hugh Grant é incapaz de matar. Não matou. E não há confissão que me convença. Pelo menos não vinda da boca do mesmo homem que conhecemos, como já dito, há mais de 30 anos. E eis aí o grande pecado do Undoing: achar que nós precisávamos de uma lição moral sobre nossas crenças na ficção. Não sabem que muitas vezes nós, o público, sabemos muito mais da ficção que os ficcionistas.

    Para terminar, isto me lembra uma pequena história ocorrida no Brasil, em que, numa novela, tentaram fazer com que Tony Ramos encarnasse um vilão, no que o público respondeu ferozmente, fazendo com que roteiristas mudassem o rumo de seu personagem. Como neste caso, acho que é justo dizer para que não inventem o impossível: assim como nosso Tony, Hugh Grant é incapaz de matar.






06/12/2020, in Facebook.

Mank (2020)





MANK (2020)

 

            Seis anos separavam Mank do último filme de David Fincher, Garota Exemplar. Era, portanto, uma estreia esperada, uma ótima oportunidade para Fincher provar mais uma vez a excelência que seus filmes recentes têm demonstrado.

            Até por isto, faltam palavras para descrever a decepção desta biografia de Herman J. Mankiewicz. Não só isto, mas também faltam palavras de um sentido mais técnico: é difícil descrever em minúcias críticas quais foram, ponto a ponto, os erros do filme. Há muita coisa nebulosa, desorganizada, claramente precária, mas difícil de ser esmiuçada.

            No entanto, tentemos: me parece que o principal “veneno” que corroeu as estruturas do filme reside numa espécie de “simbólica” muito histriônica e malograda. O filme parece ser todo erigido em torno de uma simbolização da antiga Hollywood e da vida de Mankiewicz que, antes de ser uma boa ficção, é a pior das caricaturas.

            Em primeiro lugar, o uso forçoso de uma fotografia alla Kane ou à moda noir não parece nada orgânico. Há exageros de contraste que se somam a exageros na composição do décor, tudo num intuito claro de forçar, de modo bastante grosseiro, o entendimento do espectador a perceber que “está-se fazendo uma bela homenagem aos clássicos”.

            Em segundo lugar, a montagem parece uma das coisas mais desleixadas que um diretor consagrado poderia fazer. Há alguns cortes abruptos em imagens de memórias e os flashbacks parecem ser desordenados propositalmente, tudo isto  para representar uma memória errática, mas o resultado é desastroso. Essas centelhas das lembranças de Mank, quando montadas, parecem tão lacunares que perdem qualquer força que poderiam ter. Mais uma vez há, aqui, um problema de representação: o comprimento das imagens e a forma de sua disposição parecem ter sido feitos para gerar uma caricatura dos acontecimentos, mas não para expressar o verdadeiro peso que eles tiveram na vida do protagonista. A impressão gerada é a de que os fatos são “jogados” aleatoriamente, preguiçosamente, a nossa vista.

            Um dado presente no filme, no entanto, o salva do fracasso total. Se é verdade que Mank é um filme que, em alguma medida, quer fazer justiça à memória do homem que influenciou terminantemente um dos melhores filmes do mundo, seu único trunfo reside num objeto, criado por Mankiewicz, e que foi decisivo para amarmos tanto assim Citizen Kane: Rosebud. Em Mank não há trenós, mas este objeto de desejo a ser perscrutado e reencontrado pelos espectadores é a vida do próprio Mankiewicz que, sem dúvida, representaria um material interessante até no pior dos roteiros. Sua vida atribulada, de doenças e vícios, sua relação com Welles e sua redenção, na feitura do roteiro de Kane, são episódios caros a todos nós e, mesmo mal representados, continuam atrativos.

            O saldo final é bastante negativo, claro. E mais parece, depois disso, que o verdadeiro interesse de Fincher hoje é Mindhunter, sua bem-sucedida série de TV, na qual ele vêm exercendo, em algumas incursões como diretor de episódios, experimentações eficazes que relembram os melhores momentos de Zodíaco. Que volte para o cinema, mas sem a preguiça que acometeu este último e profundo lapso de sua carreira.