domingo, 27 de fevereiro de 2022

Chor Yuen - OBITUÁRIO





Um dos meus sonhos de vida era conhecer Chor Yuen. Ter dinheiro para pegar um avião, ir até Hong Kong, me hospedar lá e ter a sorte de conseguir uma audiência com o diretor. Se conseguisse, iria perguntá-lo sobre a sua obscura carreira antes da Shaw Brothers, quando se especializou na rodagem de melodramas; sobre como começou no mundo das artes marciais; iria perguntá-lo por que diabos os seus filmes parecem sempre nebulosos, tanto no sentido figurado (porque são cheios de mistérios), quanto no sentido literal (porque a "neblina" é um motivo recorrente em suas imagens).

Este sonho muito improvável se tornou, hoje, impossível, porque, como noticiado em alguns escassos sites, Chor Yuen faleceu nesta segunda-feira.

Nos últimos anos, Yuen andava muito modificado. Os jornais chineses noticiaram que sofria de demência senil, pelo avançar da idade, mas depois desmentiram tal afirmação. O fato incontestável é que o transcorrer dos anos era substancial para a nova face pública do diretor: nas suas raras aparições em eventos, se notava uma barba comprida e branca. A cabeça quase não tinha cabelos. Sua feição era mais séria que o habitual de um homem que chegou a ser um reconhecido ator cômico. Tornara-se, enfim, a encarnação de um sábio chinês.

Até por isso, Chor representava muito mais do que sua carreira. Era um símbolo vivo da sua geração e do legado da Shaw Brothers. Uma espécie de personagem emigrado dos seus próprios filmes de kung fu, vindo a público para rememorar a todos as lições milenares que só aquele ancião era capaz de transmitir.

A ele restou a obrigação de repassar esta memória: nem Chang Cheh, nem King Hu, nem os irmão Shaw ou Mona Fong sobreviveram tanto para contar essas histórias. E o destino, curiosamente, entregou este fardo a quem pudesse carregá-lo: Chor Yuen, desde sua juventude, estava acostumado, com o sucesso estrondoso de seus filmes, a ser o maior embaixador da Shaw Brothers. A crítica certamente reconhecerá seu nome depois de Cheh, Hu e provavalmente até depois de Hou Hshiao-Hsien, mas o público não esquece: "A Espada Mágica" e "A Aranha Gigante do Kung Fu" devem estar entre os 5 maiores sucessos do cinema de artes marciais no resto do mundo. Aqui no Brasil, não há dúvidas de que Yuen era um campeão de bilheteria.

Era? Talvez ainda seja (e, aqui, me permitam uma digressão): como alguns sabem, moro numa cidade famosa por possuir uma feira enorme aos domingos, a qual possui uma parte pobre, de venda de quinquilharias, onde também se encontram, ainda nos atuais tempos de downloads e Netflix, vendedores de DVDs pirateados. No domingo retrasado fui a esta feira e estavam lá, na primeira fila dos DVDs, os bons e velhos clássicos de Chor Yuen. Numa outra ocasião, o vendedor me confidenciou, sem nem saber quem era o diretor: "Esse tipo de filme é o que mais vende! Dublado, da época!".

E este é um dos meus consolos: saber que, queiram ou não queiram os juízes, as peripécias do Espadachim Sentimental, os perigos da Cimitarra da Lua Cheia e a tragédia do Assassino da Corrente de Ferro continuarão, muito depois do falecimento de hoje, fervendo na boca do povo!

Que ele descanse em paz, junto aos seus colegas chineses que lutaram para provar que o "cinema de pancadaria" é muito mais do que muitos creem. E, claro, ao lado de Pierre Rissient, chinês de coração.


In Facebook, 21 fev. 2021