domingo, 22 de dezembro de 2019

Hu Sang - Filmes disponíveis






          Hu Sang, cineasta de grande sucesso na China durante o período comunista e antes deste, admirado por alguns críticos franceses, como Jean Tulard, é, hoje, um esquecido como muitos daqueles que permanecem à sombra do sucesso hegemônico dos neo-realistas asiáticos. Nas palavras de Tulard, ele foi "le plus esthète des nouveaux realisateurs chinois, surtout connu pour 'Les amours de Liang Chan-Po et de Tchou Ying-Tai', aux images raffinées, qui depassaient le cadre de I'opera pour denoncer les regies obscurantistes de l'ancienne societé. II est aussi capable d'emouvoir avec 'Le sacrifice du nouvel An', sacrifice dont se trouve exclue une veuve qui s'est remariée, Avec 'L'aventure extraordinaire d'un magicien', i1 a aborde pour la première fois en Chine la stéréoscopie". Faremos aqui, em tempo oportuno, uma revisão comentada de sua carreira; por ora, a critério de catalogação, segue abaixo uma lista com alguns de seus filmes que estão disponíveis para visualização on-line:


Love without End (1947)  


Long Live Missus (1947)


A Essência da Ópera Yue (1949)
youtube.com/watch?v=tZ70IYGdyzs


Miserable at Middle Age (1949)


A Aventura de um Mágico (1962)


Os Dois (1979)


Meia-noite (1981)


Romance in Philately (1984)


segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Descoberta de Guru Dutt, por Charles Tesson


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DESCOBERTA DE GURU DUTT 


Há apenas um nome dentro do cinema indiano capaz de ultrapassar a velha oposição entre filmes comerciais e filmes independentes. No início dos anos 50 (e mesmo dos anos 30 até a atualidade), existiram alguns cineastas que, conciliando um sistema econômico e estético, realizaram um verdadeiro trabalho de mise-en-scène. Esses cineastas ainda não foram descobertos e Guru Dutt é um deles. Este contribuiu para o cinema musical indiano, cantado e dançado, com uma grande qualidade de execução e um extremo cuidado. Mais do que um refinado esteta, é um cineasta suntuoso e decadente. Ele não conta histórias ou propõe temas, tem apenas obsessões que o torturam e nos oferece delírios megalomaníacos (a perseguição do fracasso e seu correspondente fantasma na celebridade post morum). Seus filmes não são autobiográficos nem premonitórios. É antes a sua vida que se assemelha progressivamente a seus filmes. O destino do Guru Dutt é inventar histórias para vivê-las em seguida. Ator e diretor, ele também se converteu (tragicamente) em um personagem de seus filmes. 

A vida de Guru Dutt foi um melodrama sombrio. Ele nasceu em 1925 e muito jovem entrou na Academia de Arte Uday Shankar, onde ensinou dança. Aos 20 anos, ele se envolveu com os estúdios da empresa Prabhar, em Puna. Dirigiu seu primeiro filme aos 26 anos no contexto do cinema comercial hindu e fundou sua própria produtora (a Guru Dutt Films Private Limited) e começou a interpretar seus filmes. Autor completo. Um caso único dentro do sistema. Ele se cerca de fiéis colaboradores: o roteirista Abrar Alvi, o músico S. D. Burman, o operador V. K. Murthy, sem esquecer o ator Johnny Walker (seu número musical em Sede Eterna, no qual ele elogia as vantagens de uma loção capilar é inesquecível). A esposa de Dutt, Geeta Roy, famosa cantora, emprestará sua voz a todas as músicas de seus filmes. Guru Dutt se arruinou em 1959 com seu sétimo filme, Flores de Papel. Em 1962, ele produziu e interpretou Sahib bibi aur ghuúzm, mas, ressentido com o fracasso de seu filme anterior, preferiu confiar a mise-en-scène ao roteirista. Guru Dutt, em seguida, continua sua carreira de ator no cinema comercial, até cometer suicídio em 1964, com 39 anos de idade. 

Os três filmes mais conhecidos de Guru Dutt (Sede Eterna, Flores de Papel e Baharen Phir Bhi Aayengi) têm um ponto em comum: Waheeda Rehman. Atriz e estrela fabricada peça por peça por Dutt. O outro ponto em comum é a descoberta imediata de que um cineasta como Dutt só poderia realmente se expressar dentro de uma economia de estúdio: ele precisa de decorações gigantescas (colunatas de estuque...), estrelas, luzes que explorem ou escondam os contornos de seu rosto, filtros que, sorrateiramente, auxiliem o olhar para a câmera. Dutt trabalha por fragmentos e fetiches: entre o primeiro plano de um rosto e todo o plano de um corpo, a luz não realiza raccord jamais. Destes três filmes, Sede Eterna é sem dúvida o mais belo e coerente. É o retrato do artista como um poeta amaldiçoado: Vijay (Guru Dutt), autor de canções, se encontra dividido entre uma prostituta (Waheeda Rehman) e uma velha amiga de escola casada com um editor rico que ignora seu talento. Quando todos o consideram morto, o editor considera apropriado publicar seu trabalho e o poeta se torna uma celebridade. Na última sequência, comovedor fragmento de antologia, o poeta retorna a um teatro no qual se celebra o primeiro aniversário de sua morte. Ele então grita seu ódio para a mesquinhez deste mundo sórdido. Ele canta também (em uma declaração com voz sublime) antes que a multidão o tome por impostor e o expulse. Quando parece que as pessoas vão reconhecê-lo, ele se afasta com desdém. Como um personagem de um Devotional Film, acompanhado pela mulher amada (Waheeta Rehman), alcançava esferas artísticas mais elevadas. 

Flores de papel é igualmente de um narcisismo sombrio. Traça a vida de um cineasta interpretado por Guru Dutt. Acompanhamos o auge de seu sucesso, momento em que conhece uma atriz (Waheeda Rehman: um episódio diretamente inspirado em sua vida), até o seu fracasso e seu progressivo afastamento dos estúdios da companhia. O início do filme (o velho que entra no estúdio vazio e se lembra de sua carreira) e o final (sua morte) são sublimes. Flores de papel não é tanto uma ilustração de A Star is Born como a atualização da angústia de saber que a estrela modelada por um cineasta pode continuar a ser sem ele. A esse respeito, deve-se acrescentar que o conjunto Dutt/Rehman, tão famoso na Índia quanto o casal Sternberg/Marlene, levará a cabo esse roteiro de fidelidade e abandono até o fim. Sabemos que, após a morte de Guru Dutt, Waheeda Rehman interrompeu abruptamente sua carreira de atriz. Nesse sentido, o momento mais bonito do filme é quando o cineasta fracassado retorna ao estúdio e, anonimamente, é empregado como figurante para encontrar sua estrela face a face e passar no teste de seu olhar. 

Como regra geral, todos os planos que Guru Dutt interpreta são muito cuidadosos: se enquadra à Welles, adota posições inverossímeis. O resto deixa algo a desejar. A partir do momento em que a música começa, a câmera se torna irreconhecível e o filme atinge uma beleza que corta a respiração. Em um único plano, a face de uma estrela que atrai toda a luz se coloca bruscamente contraluz. A cena em que o cineasta entra no estúdio e diz a sua atriz que ele não pode amá-la porque é casado é magnífica. Para mantê-lo, ela declara seu amor e canta. Naquele momento, ouvimos a voz de Geeta Roy, a esposa de Guru Dutt, que dubla as canções da protagonista. Nunca a dublagem, o encontro entre uma voz diferente e uma imagem diferente, capturou de tal forma a situação fictícia que se desenvolve. O último filme produzido por Dutt (Baharen Phir Bhi Aayengi) está longe de ser a obra-prima de que Micciollo fala. Acusa sobretudo as limitações do filme anterior. O excesso de delírio se obscurece às vezes em uma miseen-scène pouco inventiva, sabiamente acadêmica, que reduz consideravelmente o conteúdo de seu cinema. Dutt apenas dirigiu as cenas musicais deste filme (que são muito bonitas). O remake do filme, no entanto, é importante. Não é nada mais, nada menos que a versão comercial de A sala de música, de Satyajit Ray: o declínio de uma casa e da aristocracia. O filme retoma a construção de Flores de Papel e Dutt faz o papel de testemunha servil do declínio. O dono da casa gasta seu tempo e dinheiro com as bailarinas da corte. Sua esposa, para reconquistá-lo, concorda em se encerrar juntamente com ele em sua casa até a morte chegar. Meena Kumari, outra figura mítica do cinema indiano, porque teve o mesmo destino de seu personagem, interpreta a mulher. Ao ver o filme, sonhamos como teria sido se não tivéssemos na direção a sombra de um Dutt diminuído por seus fracassos e pelo fato de que seu trabalho, considerado demasiado comercial, não foi jamais tomado a sério pela crítica. Entretanto, sem nenhuma dúvida, se trata de um cineasta eminentemente atrativo e com talento. Mergulha o espectador em uma vertigem insensata em que a vida, o ator e o personagem estão perpetuamente implicados. Na qual cada vez o espectador sai subjugado e seduzido. 


 Charles Tesson, «Découvrons Guru Dutt e Ritwik Ghatak! », Cahiers du cinéma, nº 343, janeiro de 1983. * Tradução: Beatriz Saar

Good-bye, my Lady (1956) - por Luís Miguel Oliveira



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Goodbye, My Lady
de William A. Wellman


"Goodbye, My Lady" foi o antepenúltimo filme realizado por William A. Wellman, que depois de uma carreira iniciada nos anos 1920, e com vários momentos gloriosos na primeira linha de Hollywood, se aprestava a fechar a obra no tom discreto e quase menor que, no fundo, foi sempre o seu, mesmo nas produções luxuosas dos seus momentos de maior aclamação - sempre preferiu o pragmatismo à retórica, a sugestão da sensibilidade à sensibilidade gritada, a secura descritiva ao exacerbamento emocional.

Num certo sentido, e pela conjunção de características acima descritas, talvez não tenha havido cineasta americano da sua geração tão avesso ao melodrama como Wellman, certamente o género menos tocado na sua multifacetada e eclética obra, onde predominam os géneros tidos como "masculinos", tais como o filme de guerra ou o western, brutos, secos e contidos, mesmo quando declinados no "feminino" (o caso do extraordinário "Westward the Women", uma das primeiras abordagens expressas ao lugar da mulher no "western", quer o "western" do cinema quer o "western" da História). E no entanto...

E no entanto, Wellman tinha guardado, para os momentos finais da sua obra, um dos filmes mais comoventes alguma vez feitos. Em "Goodbye, My Lady", como em todos os filmes de "crianças e cães", há lágrimas de sobra para qualquer espectador que não tenha ainda os órgãos vitais empedernidos. E, sendo o supra-sumo do filme de "crianças e cães", as lágrimas aumentam exponencialmente. O que é genial? Que Wellman faça um tal filme sem abdicar dos seus princípios habituais - pragmatismo, secura, horror à retórica - e sem arrancar uma só lágrima a partir dalgum golpe baixo (aquele género de "golpes baixos" que são, ou viriam a ser, característicos da generalidade dos filmes de "crianças e cães").

Notar-se-á que, mais uma vez, Goodbye, My Lady é um filme conjugado no masculino, de onde as mulheres estão ausentes, e assente na relação entre um velhote (Walter Brennan, mais uma vez provando que foi o maior actor de cinema de todos os tempos) e um miúdo órfão (Brandon deWilde). A Lady do título é um cão, mas como não ver nesse nome (e nesse título) uma chave ou uma indicação para o verdadeiro tema do filme, que seria, muito simplesmente, e muito adequadamente para um garoto que já ficou sem mãe quando o filme começa, uma aprendizagem da perda e, consequentemente, uma aprendizagem da vida, uma entrada na vida, uma entrada naquele ponto da vida a que se chama "maturidade" e que consiste, basicamente, em ser-se confrontado com escolhas e em assumir a responsabilidade perante as escolhas que se fazem.

Assim sendo, "Goodbye My Lady", como todos os grandes filmes sobre a infância, é um filme sobre o seu fim, é um filme sobre a despedida de um tempo e de uma condição, e sobre as boas vindas, sempre com o gosto amargo das coisas inevitáveis, ao tempo em que um garotinho se transforma num homenzinho. Quando ele diz "goodbye" à sua "lady", e a vemos ir embora, engaiolada pelos seus donos legítimos, ninguém resiste, por mais enxuta que seja a forma como Wellman o filme (ou precisamente por essa forma ser tão enxuta): em raccourci, cada espectador revê o momento em que disse "goodbye" à sua "lady", revê a criança que foi e o momento em que deixou de a ser. Nos pântanos do Mississippi, Wellman arrancou, como todos os grandes autores de todas as eras e todas as disciplinas, uma narrativa universal. Esse é o seu poder, retomado a cada nova projecção. Goodbye, my Lady.



Luís Miguel Oliveira





domingo, 9 de junho de 2019

John Wick 3 - Parabellum (2019)


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            Chad Stahelski, que, apesar de seus três filmes, permanece “autor de uma só obra” (a saga “John Wick”), tem uma carreira digna de mérito: saído do mundo dos lutadores, passou a ser dublê e diretor de ação em Hollywood, até se tornar diretor. Algo entre Budd Boeticher (que, lembrem-se, foi toureiro) e Lau Kar-Leung.

            Seu primeiro filme foi comparado, nas cenas de tiroteio, aos áureos tempos de John Woo e alguma parcela da crítica interessada pela história do cinema de ação lhe considerou uma grande descoberta à época.

A tudo isto subscrevo. Sua carreira tem sido uma das mais legítimas heranças do cinema de artes marciais no mundo: se John Woo, a quem lhe compararam, foi discípulo de Chang Cheh e soube transmutar para os ares contemporâneos e para as batalhas com armas de fogo o cinema sacrificial de seu mestre (cujos filmes de ares medievais versavam sobre o sacrifício honroso dos heróis), Stahelski é, hoje, o principal produto da influência deixada por Woo no cinema americano desde os anos 1990.

 Atestado evidente disto é o recente John Wick 3 – Parabellum. Seu início apresenta os problemas típicos de algumas recentes produções do cinema de ação: a estetização de espaços a fim de criar o estranhamento de uma certa dimensão onírica, como quando Wick pede ajuda a uma mafiosa de Belarus e, até chegar a seu escritório, é conduzido por uma série de salas onde se realizam exercícios físicos e de dança, rigidamente estilizados e que parecem ocorrer “à revelia da realidade”; uma tendência ao sadismo em certas imagens gratuitas de violência (como quando, neste mesmo episódio com a mafiosa, vemos uma bailarina arrancar uma das unhas dos pés); episódios ridículos e propositados no virtuosismo da ação (que nem sempre são maus, mas que, aqui, não cabem na específica narrativa trágica que é própria aos filmes com o personagem), como na luta do estábulo, em que Wick usa “coices de cavalos” para se livrar de seus inimigos.

No entanto, apesar destes erros localizados, o filme conserva uma profusão de cenas de ação brilhantes. Em especial, o longuíssimo confronto final entre o protagonista e seus rivais japoneses. Há muito não se via esta forma de encenação: a ação dirigida nos moldes do kung fu, desta vez swm a afetação de planos curtíssimos e picotados ou, ao invés, de planos-sequências sem razão de ser. Uma série de desafios traçados sem qualquer adição à narrativa, como nos melhores filmes que Chang Cheh realizou no fim dos anos 1970 e no começo dos anos 1980. A pura e simples beleza do martírio.

            Como aconteceu aos “grandes mestres” do cinema de ação, Stahelski parece fundir com bastante destreza suas experiências pessoais como lutador no seu processo de confecção enquanto artista. Talvez, nesse sentido, fosse mais justo compará-lo a Lau Kar-Leung, que, por meio de sua arte, nos deu a ver uma visão bastante própria do que era “a vida do lutador” ou daquilo que faz especiais aqueles que lutam.

            À certa altura deste terceiro John Wick, um personagem cita o famoso brocado latino: “Si vis pacem, para bellum”. Se queres paz, prepara-te para a guerra. Chad Stahelski parece ter experimentado da guerra e, por isso, sabe recriá-la com a devida grandeza.

Godzilla II - Rei dos Monstros (2019)


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            A premissa era bastante interessante: como sempre ocorre nas histórias de Godzilla, um mundo desigual e de conflitos ambientais precisa receber uma lição dos velhos titãs para que possa seguir em frente. Desta vez, um grupo resolve ressuscitar uma série de monstros míticos para cumprir este trabalho e a narrativa toma forma como uma grande homenagem cinéfila aos inesquecíveis personagens da Toho: ganha vida o Rei Ghidorah, que será combatido, como de costume, pelo herói Godzilla. Ressuscitam, de mesmo modo, Rodan e Mothra, outros dos seres lendários do imaginário daikaiju.

            A execução, no entanto, é muito precária em certos pontos: um filme que parece duvidar da inteligência dos espectadores, recorrendo a pleonasmos frequentes (a imagem do “monstro 0” é vista; logo um personagem diz, em alto e bom som: “monstro 0”!!!); o tema do drama familiar envolvido na trama parece pouco trabalhado, apesar de recorrente.

            A ausência de complexidade nas figuras constituídas pelo enredo são, desta forma, uma espécie de auto-sabotagem: um filme de ícones, um filme de deuses, que se explica demais e retira o ar mistérico destes elementos, diminui sua divindade. Talvez fosse necessário algo mais simplório: bastavam as batalhas internas advindas do renascimento de Godzilla, Ghidorah e seus asseclas. Só a ressurreição deles já seria a glória do filme. Eles falam por si mesmos e não precisam de intérpretes.

            Ainda assim, permanecem coisas belas: o renascimento de Mothra na cascata, quando “as estrelas descem do céu” para lhe darem vida; a batalha final entre os quatro grandes monstros; o triunfo cristológico de Godzilla sobre a morte (em algum momento, um personagem diz: “ele morreu para nossa salvação”). Tudo isto não apagará os vexames contidos na produção, mas faz valer a curiosidade pela sessão.

            E, assim, que venham outros filmes. É sempre bom ver estes grandes personagens de volta. Afinal, é como dizem: vida longa ao rei!

Domino (2019)




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          Domino (ou “Dominó”, no que seria mais próprio do português), era, até há alguns dias, o filme mais esperado deste fim de década. Não é certo que todos levassem fé num retorno triunfal de Brian De Palma, depois dos sete anos sabáticos que separam Passion desta nova produção, mas não há dúvidas de que havia algo de esplendoroso neste evento: o retorno do gênio, mesmo que tímido, era um fôlego a mais para o circuito menos que medíocre dos últimos anos e, ao mesmo tempo, uma espécie de reencontro amigável com um séquito que, venha como vier, estará sempre a sua espera.

            Antes da estreia, algumas impropriedades nos períodos de produção e pós-produção denunciaram que as coisas não iam bem com o filme: De Palma concedeu uma polêmica entrevista onde dizia ter detestado a experiência de realizar aquela obra que, apesar de tudo, considerava “algo de bom”; surgiram notícias, ainda, de que o diretor se recusara a participar ativamente do processo de edição, que teria ficado quase totalmente a cargo de outros; se alardeou um corte monumental na metragem do filme, de 140 para cerca de 80 minutos.

            O resultado, como era de se esperar, foi bastante prejudicado: o corpo do filme, sua totalidade, parece bastante desigual, mesmo que suas partes isoladas (provavelmente mais isoladas ainda por uma montagem “alheia” à autoria da obra) possam demonstrar lampejos de beleza bastante brilhantes. Neste sentido, a narrativa parece se dividir em três partes: um prólogo (até a cena do desmaio do protagonista) que introduz a trama internacional traçada pelo filme; o desenvolvimento desta mesma trama; uma conclusão (a cena na arena de touros) que se pretende como grande clímax da obra. 

            O desenvolvimento, a segunda destas partes, parece mais prejudicado pelas recorrentes falhas na produção do que pelos erros do próprio autor: há, nele, uma tonalidade pedestre, um tanto monótona, evidentemente causada por uma espécie de simplificação da trama e de esterilização da imagem. É como se esta parte do enredo servisse, de modo temerariamente utilitarista, somente para tocar em frente os problemas introduzidos no prólogo, do modo mais simples possível e com as imagens mais genéricas (estéreis, neste sentido).

          Mas se, neste ponto, as imagens vistas são prejudicadas pela montagem, a conclusão não sofreu exatamente deste mesmo mal. Mesmo que, em parte, a preparação para seu clímax seja deficitária e, por isso, lhe tire a força própria, as ideias na construção das imagens parecem terríveis: a morte esdrúxula do terrorista atingido por um drone e a intervenção risível de uma coadjuvante que o impede de perpetrar seu plano de destruição são problemas diretamente relacionados à direção e, portanto, oneráveis na dívida de De Palma.

            No entanto, eu dizia que, neste filme, “algumas partes isoladas são brilhantes”. O prólogo poderia ser uma espécie de “filme em separado”. Tudo nele é sublime. É o melhor De Palma. O De Palma de Femme Fatale, para quem a encenação não têm barreiras nem medidas, para quem o quadro não é uma contingência, mas um mero joguete para se recriar, de diversas formas, a totalidade do espaço. Talvez intencionalmente, aqui se rememore Hitchcock: a vertigem de Um Corpo que Cai e os telhados de Ladrão de Casaca. O voyeur em Janela Indiscreta (e no saudoso Dublê de Corpo). 20 minutos de reinvenção, do mundo e, um pouco também, de si. Enfim, um De Palma original, como foi aquele que se recriou tantas vezes nas últimas cinco décadas.

            Nós sabemos que este provavelmente não é seu último filme (outros dois estão sendo produzidos), mas, se fosse, seria um digno final. Não perfeito (não era preciso ser o que já se foi tantas vezes), mas um marco, mesmo que tímido, daquilo que, mesmo na diversidade, sempre foram as suas obras: o retrato do gênio.

Meu Amigo Jean-Claude Brisseau, por Louis Skorecki


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          Sou amigo de Jean-Claude Brisseau há mais de quarenta anos. Eu o conheço e o amo. Eu lhe confiaria minha vida, se necessário. Mas como ainda tenho um pouco de amor pelo cinema, tenho que dizer diante do mundo incrédulo que BRISSEAU era o último lampejo do cinema francês.
Seu nome estava sujo por jornalistas incapazes de fazer uma investigação (no LIBÉRATION, quando eu ainda estava lá, um jornalista preferiu acusá-lo das piores sujeiras sem qualquer prova, e sem querer mesmo ouvir a mim, num testemunho de em primeira mão, preferindo manchar esse inocente com todos os crimes). Se há um homem desnudado diante do eterno, é Jean-Claude Brisseau, o único indivíduo que eu conheci totalmente incapaz da menor mentira.

          Quando se trata de sujar o nome de alguém, sempre usamos palavras grandes como "deontologia" e este jornalista não queria ouvir o que eu sabia sobre Jean-Claude, para “permanecer imparcial” no seu assassinato da midiático.

          Ser condenado por atrizes inescrupulosas e inconstantes (que teriam vendido sua virgindade por três tostões a um Kechiche) gerou uma mágoa profunda em BRISSEAU e, embora ele estivesse certo de que sua apelação resultaria, preferiu se resignar.

          Como em Fritz Lang ou em seu mestre Alfred Hitchcock, ele resolveu ser o WRONG MAN, o FALSE GUILTY.

          Para além de Luc Moullet, Jean-Claude Brisseau era o único cineasta na França ainda capaz de um pequeno gênio. Existem cineastas de talento, mas de gênio, não, absolutamente. Neste momento em que ocorre a sinistra feira de comércio de Cannes, os milagres profanos de Brisseau, único herdeiro convincente e avassalador do grande Luis Buñuel, nos fazem falta e nos farão por muito tempo. Durante todas as nossas vidas sentiremos a falta deles, desses anjos exterminadores e de suas rondas obsessivas e sexuais, longe das falsas deflorações de um cinema violado à exaustão.

         Jean-Claude, onde quer que você esteja, eu lhe mando um beijo.

A Vingança de Frankenstein (1958), por Jayme Chaves

          


          Quando a Hammer anunciou em 1956 que iria produzir The Curse of Frankenstein, a Universal Pictures proibiu terminantemente o uso de qualquer imagem que remetesse ao filme de 1931, o que obrigou os produtores a uma retomada do romance original ao mesmo tempo em que reinventava o personagem. O Frankenstein da Hammer, interpretado por Peter Cushing, difere substancialmente de seus antecessores. Em Mary Shelley, ele é o cientista que almejava ser o Moderno Prometeu, mas que recua imediatamente diante do sucesso de sua empreitada, sendo responsável por sua desgraça, pela desgraça de sua criação, e pela desgraça de seus amigos e familiares. O romance é uma longa lamentação, uma confissão, uma exposição do remorso de Victor, por ter alguma vez ousado tomar o lugar de Deus. O Frankenstein de James Whale (1931) é mais autoindulgente, recuando apenas quando percebe que a criatura é um homicida incontrolável. Mas o Frankenstein concebido pelo roteirista Jimmy Sangster, pelo diretor Terence Fisher, e pelo ator Peter Cushing, é a antítese de tudo isso: frio, cerebral, calculista, psicopata (no sentido estrito de “incapaz de empatia”), e, ao contrário de suas encarnações anteriores, não apenas não se horroriza com o homicídio, como o comete sem nenhum remorso. Tudo que o interessa são as suas pesquisas. Imbuído de uma autoproclamada superioridade moral e intelectual, ele destrói qualquer coisa que se coloque entre ele e seus objetivos.

         Jean-Jacques Lecercle vai deplorar esta releitura que, segundo ele, é desprovida de contradições que nos façam nos identificar com o personagem. O Frankenstein da Hammer encarna uma espécie de mal absoluto, sem nuances, desprovido de um mínimo de humanidade que nos possa fazer compartilhar, vicariamente, de sua grandeza e de sua tragédia. No entanto, me parece que Lecercle deixou escapar (mas não tanto) um dado fundamental: esse Frankenstein de 1957 foi realizado 12 anos após o término da Segunda Guerra Mundial, assim como o Frankenstein da Universal 13 anos após o término da Primeira. A Grande Guerra, que boa parte dos historiadores considera como o marco do verdadeiro início do século XX, esfriou o otimismo com que o grande público enxergava os poderes da ciência, otimismo esse responsável pela popularidade da ficção científica e da proto-ficção científica. A ficção científica entrou em certo declínio na Europa e conheceu uma formidável ascensão nos Estados Unidos, o único país na época que, saindo fortalecido da guerra, tinha razões para crer no progresso da ciência. O retrato do Dr. Frankenstein no filme de 1931 mostra um cientista mais ousado, mais tomado pela húbris, embora com algum resquício de moralidade diante do horror. O Frankenstein da Hammer é o Frankenstein pós-campos de concentração, pós morticínio planejado, calculado, em escala industrial. Pós-experiências genéticas absurdas do Dr. Josef Mengele em Auschwitz, pós-experiências biológicas absurdas do Dr. Trofin Lysenko na União Soviética. Se esse Frankenstein nos parece uma figura plana, sem ambiguidades, sem contradições, por outro lado nós tivemos exemplos bastante concretos e reais de até onde a insensibilidade diante dos resultados de uma experiência catastrófica poderia ir. O Dr. Frankenstein da Hammer é o nosso Frankenstein.

          É evidente que diante desta figuração, a criatura perdeu o estatuto que havia adquirido com Boris Karloff. O foco passou a ser o médico, e não o monstro. Ou seja: “the man who made a monster” foi erguido de sua queda e conheceu nova ascensão, solidificada graças as sequências que foram feitas. Mas, uma vez que o Mito Frankenstein estava incontornavelmente solto, liberto, unbound, sua ascensão se fez totalmente à revelia do romance original, e gerou seis sequências que expandiam, adulteravam e contradiziam o texto e o filme originais de modo radical.

          A primeira sequência, The Revenge of Frankenstein (1959), chama atenção a partir do título: dupla vingança, da personagem em seu novo contexto, e do mito como um todo. Não apenas recuperará o seu estatuto original como irá muito mais longe, estabelecendo um cânone ficcional próprio.

        O segundo filme da Hammer começa exatamente onde termina o primeiro, com o barão marchando para o cadafalso para ser guilhotinado. Escapa e passa a clinicar com outro nome, Dr. Stein, além de prestar serviços médicos para os pobres e necessitados. Essa “caridade” praticada pelo médico esconde os seus reais objetivos: encontrar carne fresca para seus experimentos, no caso, um corpo construído que receberá o cérebro de um aleijado, responsável por ajudar o “bom doutor” em sua fuga em troca de um novo corpo. No romance de Mary Shelley, bem como nos filmes de 1931 e 1957, Victor constrói a criatura com partes de defuntos recém-sepultados. Em Revenge, ele a constrói com membros de homens vivos, falsamente diagnosticados com doenças passíveis de amputamentos. A evolução da personagem em direção a uma maior deterioração moral, bem como a um avanço em sua ciência, é evidente. Avanço científico e colapso moral. Como disse E. Michael Jones em seu Monsters from the Id, “O horror é a moralidade escrita às avessas. É a ordem moral vista pelo lado errado do telescópio”.

          O roteiro, mais uma vez de Jimmy Sangster, surpreende não apenas no desenvolvimento do personagem, mas na capacidade metalinguística e autorreferencial. Um momento notável é quando o Barão é confrontado com a descoberta de sua identidade pelo jovem Dr. Hans Kleve (Francis Matthews):


STEIN: So, and what if I am this Baron Frankenstein? 

HANS: Are you? 

STEIN: Just now you were telling me, now you’ re asking. Dr. Kleve, why are you so interested in this gentleman? 

HANS: I’m in search of knowledge. 

STEIN: Oh, knowledge! Oh, so that’s it! My name is Frankenstein, I’ll admit. 

HANS: Ah! 

STEIN: But it’s a large family, you know. Remarkable since the Middle Ages for its productivity. There are offshoots everywhere, even in America, I’m told. There’s a town called Frankenstein in Germany. 


       Even in America, I’m told. A ironia não poderia ser maior. O Barão, com sua dupla nacionalidade – suíça enquanto criador, inglesa enquanto criatura – tem a sua vingança, escarnecendo da usurpação generalizada, perpetrada pelos estadunidenses da Universal Pictures.

          O filme se encerra com o linchamento do Dr. Stein pelos seus pacientes, quando sua verdadeira identidade é revelada. Prestes a morrer, ele ordena ao apavorado Dr. Kleve que transfira o seu cérebro para um corpo recém-construído. Sua nova identidade, Dr. Frank, instala-se em Londres. Percebemos que seu novo braço, tatuado, é o braço amputado de um marginal de rua, interno do hospital onde sua identidade pregressa clinicava.

           Os dois primeiros filmes da franquia Hammer formam um conjunto harmonioso, tanto na mise-em-scène como no roteiro. Sete anos depois, o estúdio norte-americano percebeu o potencial financeiro das produções britânicas. O terceiro filme da série é surpreendente, o que, no caso, não é um elogio. The Evil of Frankenstein (1964) ignora quase tudo que sucedeu nos filmes anteriores. Esperamos, como espectadores, encontrar o Dr. Frank com seu braço tatuado clinicando em Londres e dedicando-se a novos, mais ousados e macabros experimentos. Mas não. Nesta sequência, nunca houve prisão, condenação, guilhotina, fuga, nova identidade, quase-morte, transplante de cérebro e braço tatuado. Nunca houve Londres. Reencena, em flashback, os acontecimentos do primeiro filme, modificando bastante a história. A reminiscência de sua criação primordial remete ao filme da Universal, o que se explica por razões contratuais: a produtora distribuiu o filme nos Estados Unidos e finalmente cedeu os direitos de uso da iconografia dos anos de 1930: o design do laboratório, a maquiagem de Boris Karloff, o moinho, o tema da noiva – Rena, uma jovem surda-muda interpretada por Katy Wild. Na verdade, este terceiro filme quebra a continuidade com os outros porque ele foi uma tentativa de fazer aquilo que sempre foi o projeto original da Hammer: refilmar o clássico de 1931. Infelizmente, vislumbrando uma maior distribuição de seus filmes mundo afora, o estúdio não se importou de descartar a originalidade conseguida com a dupla Curse/Revenge, e recomeçou a história praticamente no ponto em que o primeiro filme de Whale se encerra. Com um roteiro fraco, desta vez escrito por John Elder, direção pouco inspirada de Freddie Francis e dispensando as premissas engenhosamente arquitetadas pela dupla Fischer/Sangster dos dois primeiros filmes, The Evil of Frankenstein é uma decepção. Seu único momento memorável é a abertura, onde a dissecação de um cadáver fresco é mostrada, juntamente com os créditos iniciais, apenas com a imagem em close do rosto febril do Barão.

          No entanto, este pouco apreço pela coerência interna deste mundo ficcional que estava sendo construído vai acabar por reforçar o potencial mítico do personagem. Mas isso já é outra história.

sábado, 11 de maio de 2019

Feng Yueh e os Pintores da Tragédia, por Yuri Ramos




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           Feng Yueh foi um homem de sucessos. Desde a década de 1930, emplacou estouros de bilheteria, com alguns clássicos relativamente lembrados até os dias de hoje pelos chineses. Foi o principal diretor da carreira de Linda Lin Dai, a suicida que conquistou o coração de toda Hong Kong e que, ainda hoje, é uma das atrizes mais afamadas do cinema chinês. Conseguiu a proeza de com mais de 70 anos de idade continuar a filmar numa produtora de tino comercial imenso como a Shaw Brothers, numa época em que isto era raro. Terminou sua carreira com mais dezenas de filmes do que as dezenas e dezenas de anos em que lutou nas fileiras deste campo de batalha arisco que é o do cinema.

            Hoje, Feng Yueh é um nome mais do que esquecido. Seus filmes estão aí para todos verem, mas a autoria por trás das películas parece ignorada por muito, quase todos. O Hong Kong Film Archive, que vem realizando inclusive bom trabalho de resgate dos cineastas de seu país (produziram um livro inteiro sobre Zhu Shilin), somente lhe dedica uma mísera página em seu catálogo de diretores. Isto se deve, em grande parte, é claro, ao fato de que os poucos críticos dedicados mais seriamente ao legado dos irmãos Shaw, hoje em dia, se resumem mormente a proclamar como “autores” do cinema de kung fu a King Hu, Chang Cheh, Lau Kar-Leung e, quando muito, a Chor Yuen, muito impulsionados pela reverberação que estes cineastas tiveram na Europa em certos círculos, entre as décadas de 1970 e 1980. Por causa de Pierre Rissient, alguns também descobriram o terreno da ópera huangmei e vangloriam Han-Hsiang Li, mas estes casos são raros.

            Perdem muito ao não conhecerem um gênio (e profundamente autoral), um dos maiores gênios de Hong Kong. Yueh impôs um estilo único, derivado em grande parte da pintura, que lhe fez tecer suas imagens sempre de forma trágica, mas ao mesmo tempo bastante tênue, equilibrada, mas cheia de esplendor. Não era parente da pintura chinesa, como o era Han-Hsiang Li (e mesmo King Hu, se se perceber com cuidado), que em suas coreografias emigradas da ópera huangmei valorizavam os cenários fixos, os gestos lânguidos, a imagem eternizada na bidimensionalidade, que preconiza mais significados dos símbolos estáticos do que o que é dito de forma mais evidente nas ações. E isto tudo apesar de ter sido um dos grandes diretores dos filmes de ópera. Neste sentido pitoresco, estava muito mais aliado à pintura ocidental barroca ou clássica. Em quase todos os seus filmes de artes marciais, mas também em seus melodramas coloridos (e isto se deve, em partes, ao trabalho de fotógrafo de Pao Hshueh-Li), há um enorme contraste entre luz e sombra: a presença constante de planos da câmera contra o sol, mas, ao mesmo tempo, a insistência em cenários escuros, num tom marrom predominante, e na valorização dos sombreados em cada cena. Esta característica fotográfica redunda também em questões morais que permeiam seus enredos: estes mundos claros-escuros são universos sem paz, profundamente tensionados pela iminência da tragédia, como se a sombra do destino fosse sempre aquela que encobrisse a vida dos homens. E é claro, como bom trágico, tensiona também seus personagens entre vida e morte (que, muitas vezes, significa o sacrifício redentor).

            Em seus filmes de ópera, igualmente valorizou a volubilidade narrativa do melodrama no cuidado com as imagens: sem a bidimensionalidade de Han-Hsiang e seus cenários semi-teatrais, bastante imutáveis e, em algum sentido, estáveis, Yueh empregava um décor mais realista, onde, para além da preocupação com o número musical cantado, a cenografia aparentasse o ambiente do personagem tão variável quanto o quotidiano, sem que fosse necessário, para a execução de uma ária ou de outro número, a onipresente estrutura fixa dos tradicionais cenários do cinema huangmei. Isto viria, em sua proposital “instabilidade”, ao encontro das idas e vindas amorosas tão típicas destas histórias tradicionais de melodrama.

            Também “como pintor”, Yueh foi um mestre dos símbolos. Suas imagens eram sempre carregadas de profundas rememorações e enormes significados; as frases de seus roteiros (também foi roteirista afamado) tinham algo de mistérico, de inefável, como naquele inesquecível final de The Bells of Death, em que os sobreviventes de um massacre dizem que retornarão para casa, mesmo vendo que estão a caminho de um casebre totalmente destruído. Para retratar o confronto do homem com seu fado, utilizou-se de arquétipos dos elementos naturais, que ajudam a discernir a força do heroísmo: o fogo, na redenção final de The Last Woman of Shang; o dilúvio movido por uma mulher em prol de seu amor, em Madame White Snake. Yueh caminhou, assim, numa espécie de “realismo fantástico”, onde os sentimentos reais de seus personagens, ao serem cada vez mais presentificados na tela por alegorias, símbolos, metáforas e outras figuras, tornassem a realidade cada vez mais fantasiosa. É como se o abstrato, reificado e presentificado no simbólico, tornasse concreta a fantasia.

            Seu ofício de trágico foi muito parecido com o de Chang Cheh (com quem compartilhou boa parte de sua equipe técnica): os temas do heroísmo e também da amizade lhe aprouveram, mas, diferentemente de seu conterrâneo, o universo feminino lhe foi mais presente que o masculino, tendo sido um grande eternizados de heroínas e personagens célebres, sendo Hua Mulan, a general travestida de homem, provavelmente a mais famosa. Também como Cheh, tinha certa obsessão imagética pelo sangue, mas de modo diferente. Não era este fluido, para ele, um mero material pictórico, uma espécie de tinta a tecer imagens na tela. Era antes uma mácula, um signo forte daquilo que representava a morte, a ser mostrado com abundância, bem destacado, mas principalmente em contraste com os corpos, para mostrá-los assinalados daquela marca.  Algo macabramente decorativo.

            Curiosamente, no fim da vida, já em seus filmes do fim dos anos 1960 e ainda nos anos 1970, sua vocação para as imagens clássicas começou a aparentar certo geometrismo, principalmente na direção de ação. As lutas travadas organizavam grandes blocos em polígonos relativamente regulares e coreografias bastante organizadas, como no fim de Village of Tigers. Havia também a preferência pelo martírio de personagens por um esfaqueamento abundante, em que as adagas e lanças presas ao corpo do seviciado aparentavam um grande conjunto de retas diagonais que sempre se encontravam sobre a mesma matéria torturada, a partir do movimento repetido dos algozes.

            Tudo isto demonstra um fôlego inovador e impressionante, principalmente para um cineasta cuja estima é quase nula nos dias atuais. É prova de que nossa cinefilia ainda vive sob os grilhões dos incensos à crítica consagrada (estes que, é uma pena, não têm muita culpa do culto que lhes prestam) e de que o cinema asiático ainda tem muito o que nos revelar.

Neste ano, cumprem-se as duas décadas exatas da morte de Feng Yueh. Esperemos que, daqui a mais duas, sua memória tenha a relevância que merece.





Feng Yueh (1901-1999)




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Feng Yueh (1901-1999)



Com o nome verdadeiro de Da Zichun, Yueh nasceu em uma família do nordeste da China. Seus familiares mais tarde se estabeleceram em Danyang, Jiangsu. Nasceu e cresceu em Xangai e tornou-se aprendiz num estúdio fotográfico em 1929, depois de se formar no ensino médio. Mais tarde, foi para aprender sobre revelação de filmes e edição na Dadong Co., ganhando o reconhecimento de Wang Yuen-lung, e depois se tornando assistente de direção em 1931. Em 1933, vendo o sucesso de Morning Glory, que Yueh escreveu e ajudou a dirigir, a Yi Hwa Film Company de Yan Chuntang o contratou como diretor. Yueh então ficou famoso com sua estreia como diretor, Raging Waves of China Sea (1933), um título anti-japonês. Em 1935, ele rodou Refugees, aclamado pela crítica , que estabeleceu sua posição como um importante diretor. Após o declínio da Yi Hwa, ele fez Sunrise (1938) e alguns outros filmes para Hsin Hwa e a China United. Em 1942, Yueh ingressou na China United Film Company Limited (Zhonglian), renomeada como China United Film Holdings Company Ltd. [Huaying], fazendo filmes como Life and Death Disaster (1944), filme de um tênue patriotismo. No entanto, após a guerra, Yueh foi acusado de traição porque co-dirigiu Eternal Regret on the Spring River (1944) com o japonês Hiroshi Inagaki. Não foi senão em 1947 que seu nome foi limpo e ele fez um retorno para dirigir The Incredible Rose.

Em 1949, com o convite de Zhang Shankun, Yueh veio para Hong Kong e se juntou à Great Wall Pictures Corporation, para a qual ele filmou A Forgotten Woman (1949) e Blood Will Tell (1949). Em 1953, fundou a Dafang Film Company em Hong Kong e fez A Love Story (1954). Em 1956, após o encaminhamento de Albert Odell, Yueh dirigiu o sucesso de bilheteria Merry-Go-Round para Cathay Motion Picture Co. Ltd. (a antecessora da Motion Picture and General Investment Co Ltd [MP & GI]). Ele fez oito filmes depois de se juntar à MP & GI, incluindo Golden Lotus (1957), em que Linda Lin Dai ganhou seu primeiro prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cinema Asiático, The Battle of Love (1957), Scarlet Doll (1958), For Better, For Worse (1959), etc.

Em 1959, Yueh ingressou na Shaw Brothers (Hong Kong) Ltd., onde trabalhou até a aposentadoria. Entre suas obras proeminentes, se incluem Street Boys (1960) e The Deformed (1960), todos títulos de wenyi com temas sociais; The Last Woman of Shang (1964), um épico histórico; musicais de ópera huangmei, como Madame White Snake (1962), Lady General Hua Mulan (1964), The West Chamber (1965) e The Three Smiles (1969), que ganhou o prêmio de melhor comédia no 15º Festival de Cinema Asiático; bem como wuxias, entre os quais The Swallow Thief (1961), Revenge of a Swordsman (1963) e The Dragon Creek (1967). Seu último trabalho foi Village of Tigers (co-dirigido por Wang Ping, 1974). Yueh atuou também como roteirista. The Deformed e Bitter Sweet (1963), que Yueh escreveu sob o pseudônimo Ge Ruifen, ganhou o prêmio de Melhor Roteiro respectivamente no 8º Festival de Cinema Asiático e no 2º Prêmio Golden Horse em Taiwan. Yueh recebeu o prêmio Lifetime Achievement do Sindicato dos Diretores de Cinema de Hong Kong em 1991 e um prêmio especial do Golden Horse Awards em 1993. Ele faleceu em 3 de julho de 1999 em Hong Kong.


(Texto originalmente elaborado pelo Hong Kong Film Archive, traduzido por Yuri Ramos)













sexta-feira, 12 de abril de 2019

John Farrow - O cinema teológico, por Yuri Ramos



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O nome de John Farrow, aparentemente inaudito pela cinefilia atual, parece ter sofrido não só hoje, mas já há bastante tempo, a marca de pechas não muito justas que recaem sobre sua estranha passagem pelo mundo do cinema. Antes de ser diretor, foi escritor e marinheiro da Royal Naval Academy, título que o fez chegar a Hollywood como conselheiro para a produção de filmes marítimos. Atuará inicialmente, para além dessa função de conselheiro, como roteirista para, mais tarde, chegar à direção. Convertido ao catolicismo, será um dos mais influentes membros da “liga da decência hollywoodiana” e esta, talvez, permaneça sua principal marca a ser maldita por aqueles críticos que, mesmo lhe tecendo elogios, consideraram-lhe um mero moralista.

            Independentemente das benesses ou dos malefícios trazidos pelos grupos moralizadores presentes no cinema clássico americano, é fato que a cosmovisão religiosa de Farrow atingiu de modo definitivo sua obra, mesmo que, em algumas ocasiões, de modo não tão evidente.

            Seu melhor filme, “O Enviado de Satanás”, é uma prova bastante clara disto, mas talvez não da forma como os críticos do diretor possam supor. Seu sentido religioso não se constitui meramente a partir de uma mensagem moral ou da formulação de personagens que possam aludir a moldes típicos da lide do homem com o problema do bem e do mal.  Isto, naturalmente, não invalida o fato de termos, aqui, presentes vários arquétipos humanos cujas personalidades são erigidas num campo para além da imagem projetada: Nick Beal, o grande demônio interpretado por Ray Milland é o tipo perfeito do tentador que cerca por todos os lados suas vítimas; aqueles que estão a sua volta e que por ele se deixam conduzir são os homens, quotidianamente inseridos no “mistério da iniquidade” disposto neste mundo, que, muitas vezes, os cega e os afasta da verdade. No entanto, em Farrow este “senso teológico” vai mais além e recai mesmo para as formas fílmicas imagéticas e, mais especialmente, para sua mise-en-scène.

            Este dado denota algo de mais profundo e mais específico sobre o fazer artístico presente em sua obra: se tem o cinema uma das vocações da chamada “arte-total”, no sentido de ser uma daquelas modalidades artísticas que têm a capacidade de mimetizar as mais diversas dimensões sensíveis da realidade, de certa forma, mais do que outros artistas, o cineasta é chamado a dar a ver sua cosmovisão sobre o mundo a partir da construção de uma espécie de mundo-reflexo ou de mundo-paralelo, que é sua obra de arte: o filme. Não se trata necessariamente de que esta afirmação tenha, por detrás, uma obrigação para com o realismo, ou seja, para com a imitação fiel do mundo tal e qual se lhe percebe: este mundo-reflexo é, antes de tudo, um objeto simbólico que sinaliza em direção à realidade (e à visão cosmológica acerca dela), mesmo que, por vezes, de modo alegórico ou metafórico. E é natural que, no cinema dramatizado, onde o mundo, por assim dizer, é a cena, o dever do cineasta, para além da inserção de tipos humanos, de narrativas, de episódios e situações, no corpo constitutivo do filme, é também o de recriar a realidade não só por esses elementos, mas pela mise-en-scène, ou seja, pela própria modulação imagético-espacial daquilo que é filmado. É isto, no fundo, o cumprimento daquele velho jargão instituído por Alexandre Astruc e que definia a autoralidade no cinema: a saber, que o “autor cinematográfico” é aquele cuja escrita é a escrita da câmera, a escrita da imagem, da caméra-stylo. E é tudo isto que vemos na estilística presente na obra de John Farrow. Para além dos “moralismos”, sua teologia e sua religião se constituíram em imagens, em concepções de espaço, enfim, numa estética cinematográfica própria, onde aquilo que meramente concerne ao “escritor Farrow”, àquele que edifica personagens, homens a lidar com uma realidade perversa e com o problema de Deus, é só um detalhe.

            Neste “O Enviado de Satanás”, estes aspectos são bem evidentes: Ray Milland não controla somente “os destinos” dos ingênuos, mas os espaços onde podem ou não transitar: numa conversa sobre o futuro político de Thomas Mitchell, Farrow aplica um tênue plano-sequência que mostra as idas e vindas do impassível Thomas dentro de uma sala. Ray permanece parado, destacado em primeiro plano. Tudo gira em torno dele e quando o homem a quem ele encarcera o ordena que saia da sala, diz: “Acho que já acabei”. Nada lhe escapa das mãos. Numa outra ocasião, ao ir para o apartamento de Audrey Totter para convencê-la a fazer um discurso ensaiado peara o mesmo Mitchell, há um recurso dramatúrgico genial, por parte de Farrow, com planos que se duplicam e se refletem: Milland ensaia a moça lhe mandando dizer certas palavras, mas, ao longo do discurso, certa coreografia impera: a mulher se levanta para repetir algumas palavras, em outro momento se sentam os dois, lado a lado, numa poltrona. Ela está vestida de branco.  Quando percebe que Mitchell está vindo, entra para o quarto e Ray se esconde. Ela volta à sala para receber o inocente que havia chegado, mas, agora, vestida de preto. Tudo ocorre novamente, como se fosse imagem da cena anterior: os dois sentados na poltrona, os elementos coreográficos. O pouco que muda é demonstração sutil de um dado cruel: a representação pode ser quase a mesma, mas, agora, o que se encenava era a rendição de dois inocentes aos poderes do mal, não mais o império de um demônio a mandar e desmandar numa mulher comum. Essas sutilezas dão conta de que Farrow não pretendeu fazer um filme que simplesmente narrasse o afastamento do homem em relação à graça ou sobre a sedução do Mal. Sua obra é um verdadeiro exercício virtuosístico que utiliza-se das formas cênicas para afirmar uma verdade eterna: aqueles que consentem com o Inimigo estão presos por ele numa cegueira que conduz (algumas vezes em sentido literal) à morte.

              Esta estilística, no entanto, não estará localizada somente em “Alias Nick Beal”, mas em vários outros sucessos de sua carreira. Notadamente, “The Big Clock”, com o mesmo Ray Milland, utilizará mais uma vez a linguagem claustrofóbica dos planos-sequência para demonstrar as intempéries do destino que, assim como aos limites da imagem filmada, são inescapáveis.  Neste e ainda em outros filmes sua homogeneidade autoral se verificará patente. Seu domínio virtuosístico sobre a decupagem e a coreografia chegarão aos níveis de excelência perpetrados por outros tão famosos por se utilizarem destes mecanismos, como até mesmo Kenji Mizoguchi. Sua obra merecia mais do que a pecha viciada que ganhou por aqueles que, algumas vezes, parecem amar mais a liberdade artística do que o bem das obras de arte. Seu moralismo, se é que assim pode ser chamado, era muito mais complexo do que se imaginou. Era uma teologia cinematográfica.

O Morro dos Maus Espíritos - Entrevista com Henry Hathaway




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Polly Platt: Agora estamos em The Shepherd of the Hills, de 1941. Ele me lembra The Trail of the Lonesome Pine.

Henry Hathaway: Ele foi feito no mesmo lugar do Trail of the Lonesome Pine; em Big Bear Lake. E foram feitos no mesmo período, ambos estão envoltos pela Montanha, então eles têm o mesmo “sabor”.

PP: Tudo era cinza. E tênue, exatamente como você fez em Trail of the Lonesome Pine. Betty Field está vestindo o mesmo vestido que Sylvia Sidney, e eu notei que John Wayne fala com o túmulo de sua mãe neste filme, antecedendo uma cena parecida em She Wore a Yellow Ribbon. Eu acho que Ford pegou essa ideia de você.

HH: Muitas coisas foram copiadas desse filme. Eu vi duas coisas em Shane que foram copiadas desse filme. A velha mulher sentada na cadeira de balanço no sepultamento, lembra disso? Eu filmei a velha Marjorie Main próxima a um penhasco na cadeira de balanço, no momento em que tiram suas ataduras para descobrir se ela voltará a enxergar.

Uma coisa engraçada sobre Wayne: Wayne é mais específico sobre as calças que ele usa do que sobre qualquer coisa no mundo, isso porque ele tem quadris enormes. Ele é muito “ossudo”... isso o deixa louco. E eu disse “Você deve usar calças feitas sob medida, não pode usar algodão gabardine, pelo amor de Deus, ou popeline ou alguma coisa. Você deve vestir algo sob medida”. Então fizemos as calças sob medida, e tivemos problemas com elas.
Nessa época, no meu escritório, eu tinha fotos penduradas nas paredes de cada filme que eu havia feito. Posteriormente, quando me mudei para meu rancho em Rogue River, eu chamei esse conjunto de fotos de “a galeria de Rogue”. Eu tinha uma foto com Betty Field inclinando-se contra uma árvore – um desses grandes e lindos pinheiros – de Shepherd of the Hills e de John Wayne com calças caseiras. Ele veio ao meu escritório. Eu tinha voltado à Paramount recentemente para fazer The Sons of Katie Elder (1965), e tinha as fotos nas paredes; olhou para elas e disse “você se lembra dessas malditas calças?!” (risos)


(...)


HH: Vou lhe contar uma história sobre Shepherd of the Hills e acho que essa é uma história memorável. A razão de eu ter saído da Paramount foi por conta desse filme. Foi meio longo - 12000 pés. São duas horas. Nós o exibimos em San Bernardino, que é uma espécie de vizinhança rude, numa sexta à noite, com um monte de crianças e outras pessoas. As crianças da escola saíam sexta à noite. Nós propositalmente fizemos a sessão neste horário e para aquele público específico da cidade. Nem uma alma sequer deixou o cinema. Oitenta porcento dos presentes disseram que era maravilhoso. E nenhum deles – e eles eram cerca de quatrocentos, o que foi extraordinário – disse que era muito longo. Nenhum. Nós voltamos para o estúdio absolutamente encantados. Foi um filme extremamente longo. Então nós cortamos algumas coisas e o levamos para Pasadena em uma quinta à noite. Você escolhe diferentes noites porque você pega diferentes tipos de público. E na quinta... nós pegamos um outro tipo de público. O filme, eu acho, tinha cerca de 11.800 pés ou alguma coisa assim. Cerca de 110 minutos. Oito ou dez pessoas levantaram-se e saíram do cinema e cerca de cinco por cento dos cartões diziam que era longo demais.


(...)


PP: É um bom filme. Muitos dizem que Shepherd of the Hills é o melhor de seus filmes, mas eu certamente acho que Trail of the Lonesome Pine é melhor. 

HH: É um filme muito melhor, de fato. Eu vou te dizer, nós tivemos muitos problemas com Shepherd por conta de Jack Moss, que é um homem muito, muito estranho.

PP: Que era gerente de negócios de Gary Copper.

HH: E meu. Era empresário de apenas duas pessoas.

PP: Depois de você começar a dirigir Gary Copper, ele lhe perguntou...?

HH: Sim. Nunca tirou um centavo de mim... Nós éramos bons amigos, amigos maravilhosos, e ele realmente adorava fazer coisas para as pessoas. Eu tinha Jack Moss como produtor em Shepherd of the Hills, e ele tinha um roteirista preferido, que queria refazer algumas coisas que Grover Jones havia feito, e esse foi o primeiro momento em que começamos a discutir. Então ele se casou com essa... garota que atuou em alguns papéis da Paramount e que era como um problema duplo. Ele estava tendo problemas com ela – ela sumia e outras coisas – . ele não sabia onde diabos ela estava. E coisas que eram para supostamente estarem feitas nunca estavam, e muitas delas eu tive que fazer.


(Henry Hathaway, em entrevista a Polly Platt; Henry Hathaway – A Directors Guild of America Oral History; Filmmakers Series, No. 84; Lanham, Maryland, e Londres: The Scarecrow Press, Ine. 2001. pp. 173-176; Tradução: Beatriz Saar)

Henry Hathaway, por Kingsley Canham



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     Henry Hathaway nasceu em 13 de março de 1898, em Sacramento, Califórnia, mas sua família mudou-se quase imediatamente após seu nascimento para São Francisco; sua mãe Jean foi uma atriz de teatro, e seu pai Rhoady um gerente de teatro, de modo que o menino cresceu no mundo do show business.

      Por direito, ele é o Marquês Henri Leopold de Fiennes. O título é herdado de seu avô, que foi comissionado pelo Rei dos Belgas para adquirir as Ilhas Sandwich (no Havaí) para o seu país. Falhando neste intento e com vergonha de voltar para casa, ele viajou para São Francisco, onde se estabeleceu como advogado em 1850. Logo depois, se casou, e sua esposa lhe deu um filho, Rhoady, que cresceu para se tornar um gerente teatral. Rhoady levou o nome de solteira de sua esposa, Hathaway, e permitiu que ela trilhasse carreira como atriz de teatro, tendo seu filho Henry sendo nascido durante uma turnê em Sacramento. Os contatos familiares levaram-no a tornar-se um ator mirim numa companhia cinematográfica americana em 1908, onde se tornou um protegido do diretor Allan Dwan. Dwan, de 23 anos de idade, tinha entrado na indústria escrevendo e vendendo um roteiro para Essanay, depois disso mudando para a American Film Company como roteirista, editor de roteiros e diretor em seu estúdio em San Diego. Excepcionalmente prolífico em sua produção, Dwan fez mais de quatrocentos filmes de uma e duas bobinas para a Companhia no período de 1908 a 1912. Filmando ao longo da fronteira mexicana com uma companhia de atores, incluindo J. Warren Kerrigan e Wallace Reid, dirigiu um filme por dia, cinco dias por semana. Assim, como um ator infantil, Hathaway primeiro experienciou um pouco da cultura do Oeste Americano, que desenvolveria como um de seus maiores temas em filmes futuros, já como realizador. Infelizmente, devido à ausência de créditos detalhados para filmes desta década, não é possível nomear qualquer aparição de Hathaway, embora pelo menos 239 dos 400 títulos ímpares sejam conhecidos. Em 1912, Hathaway se mudou para o lado de trás das câmeras, como aderecista na Universal, deixando os estudos de lado. Em 1917, também promove sua carreira como ator, desempenhando pepéis em seriados juvenis.
      A entrada da América na Primeira Guerra Mundial pôs fim às suas ambições, se tornando um instrutor de artilharia em Fort Wingfield School, São Francisco, durante a guerra. Volta, no entanto, para Hollywood em 1921, como aderecista do produtor/diretor Frank Lloyd, tendo falhado numa tentativa de deixar sua marca no mundo das altas finanças com a Morris Audit Company, para quem trabalhou imediatamente após a sua demissão do exército em 1919. Lloyd fez sua reputação por adaptações consistentemente bem sucedidas de clássicos literários, como A Tale of Two Cities (1917), e algumas de suas ocupações nas produções foram transferidas para Hathaway. Isto foi nutrido e floresceu sob a inspiração de Paul Bern, para quem Hathaway funcionava como diretor assistente. Bern o encorajou a ler amplamente, para completar sua educação, assim como incentivou a paixão de Hathaway por viajar, impelido-o a ir para a Índia, onde passou nove meses coletando material para um documentário sobre peregrinações. O projeto acabou por não se concretizar, mas a experiência influenciaria seu futuro filme, The Life of a Bengal Lancer (1935), que foi seu primeiro sucesso popular como diretor.
         Na sua capacidade de assistente de direção, Hathaway também trabalhou brevemente para Sam Goldwyn antes de se mudar para a Paramount, onde atuou em estreita associação com Josef von Sternberg e Victor Fleming. A última destas sociedades foi particularmente frutífera, como ele lembrou em uma entrevista recente: "Fleming nunca teve uma conferência sem mim, nunca fui ao escritório da frente sem mim, nunca fez um casting sem mim, não porque ele precisava fazer isso, mas para que eu pudesse aprender. Fleming não era um homem de brincadeiras ... ele era muito sério, exigente e muito positivo no que queria, e a maior parte dos principais homens com quem lidou acabaram moldados por seu comportamento; ele era um homem muito duro. Acho que havia mais de Fleming em Gable, no fim de tudo, do que havia do próprio Gable em si mesmo. Acho que Gable realmente imitou Victor Fleming e se tornou esse tipo de homem na tela”.
         "Com Fleming eu fiz The Virginian. Eu fiz todos aqueles faroestes primitivos, todos os Zane Grays, os que eu fiz de novo. Aprendi principalmente, deles, como lidar com pessoas. Eu levava um roteiro para casa e pensava sobre ele. O que eu diria a essas pessoas para fazerem em cena, como eu começaria, onde seria o clímax, o que eu conseguiria com isso, como me livrar das pessoas ocupando a cena, onde eu faria isso - na frente do fogo ou no sofá -, o que eu faria? Tudo isso era inventado na minha mente, mas depois via o que faziam de verdade. Totalmente diferente! Mas você aprende..." (" Focus on Film" No. 7, 1971). A influência de Fleming é particularmente notável em várias áreas do trabalho de Hathaway; em primeiro lugar, na consistência das performances em todos seus filmes e, em segundo lugar, na composição das imagens. Sua tela raramente está vazia, mas por outro lado nunca está superlotada de modo que há pouca tentativa de agredir o público em um nível visual, a menos que a imagem seja concebida como um corte chocante ou zoom que se justifica no seu contexto. Ao mesmo tempo, a atenção aos detalhes dentro do quadro é relevante para a caracterização e para o desenvolvimento narrativo. Por exemplo, em 1927, Hathaway trabalhou como assistente de Fleming em Mantrap, um drama romântico ao ar livre estrelado Ernest Torrence, Clara Bow e Percy Marmont, adaptados de um romance de Sinclair Lewis. A história se passsa em uma comunidade nas montanhas rochosas canadenses durante os primeiros anos do século XX. Um velho lojista (Torrence) tira o avental e desce para Minneapolis pela primeira vez desde 1903 ao ouvir que "tornozelos não é a metade do que as garotas estão mostrando agora ". Ele compra uma esposa (Bow), que acha a vida nas selvas insuportável e foge com um caçador jovem e bonito (Marmont). Nove anos depois de Mantrap, Hathaway dirigiu The Trail of the Lonesome Pine; foi seu segundo grande trabalho, e o primeiro orçamento 'A' do faroeste para três processos de coloração. Como tal, faz certas concessões em termos de imagens filmadas apenas para efeitos de cor, mas um exame atento à cena de abertura e ao conteúdo do esboço da trama contêm ambos a influência de Fleming e indicações do desenvolvimento posterior de Hathaway. O enredo se situa em uma comunidade de cabanas de madeira, onde velhos bosques, velhos costumes e códigos antigos vivem inalterados. "A introdução classifica os habitantes como pessoas cujo ódio e cuja propriedade eram o seu patriotismo, e para os quais os costumes pitorescos eram religião. O prólogo, definido no início do século XX, abre com a câmera panorâmica através de um vale azul da montanha, no enfoque de figuras nas rochas disparando em uma cabana de madeira. Cortando para os ocupantes, estabelece que o pai e dois filhos estão presos sob o fogo em um banheiro externo, enquanto a esposa grávida está prestes a dar à luz dentro de casa. O filho mais velho detém o pai, enquanto este tenta quebrar um cobertura que o impede de sair e correr para a casa, mas sua preocupação é desviada quando o filho mais jovem se machuca após desferir um tiro contra aqueles que os atacam. Ele fica ileso, apenas é lançado para trás pelo impacto de sua arma de fogo. Os gritos de um bebê confirmam que a mãe e o filho estão vivos. Hathaway corta para o interior da cabana, onde a mãe (Beulah Bondi) embala o bebê recém-nascido, uma menina, em seus braços, orando: "Dê-lhe forças para ser boa, Senhor, mas não a deixe carregar o fardo do medo. Oh, o assassinato, o assassinato! Por que isso tem que ser? "; e a imagem se transfere para o plano da queda de um único pinheiro, num vale. Sobreposto, vem o dizer: "Hoje". O enredo gira em torno de problemas com a propriedade da família, que são finalmente resolvidos através da intervenção de um jovem engenheiro de minas (Fred MacMurray), que se apaixona pela garota que lá habita (Sylvia Sidney). Ela está tão infeliz com seu ambiente como a personagem Clara Bow em Mantrap, e anseia por escapar para o excitação da vida da cidade. Assim, o filme se encaixa tanto na categoria "folclórico-mitológica" quanto na do western; outros filmes de Hathaway nessa tradição são Go West Young Man (1936) com a estrela de cinema Mae West fazendo uma parada imprevista numa cidade caipira; The Sheperd of the Hills (1941) que tem a reputação de ser o melhor dos filmes "de montanha", e que foi o primeiro filme de Hathaway com John Wayne, e Home in Indiana ( 1944 ) , um drama passado numa cidade pequena, cobre amores de juventude e corridas de arnês. A carreira de Hathaway inclui diversos dos gêneros populares no cinema de Hollywood, entre os quais o faroeste (seus oito primeiros filmes, muitos dos quais estrelados por Randolph Scott e baseados nos contos de Zane Grey) —Rawhide, Garden of Evil, From Hell to Texas/ Manhunt, North to Alaska, episódios de How the West Was Won, The Sons of Katie Elder, Nevada Smith, Five Card Stud, True Grit, e Shootout; Filmes de gângster ou de crime —Johnny Apollo, The Dark Corner, Kiss of Death, Call Northside 777, e Seven Thieves. Seus melodramas incluem Peter Ibbetson, Now and Forever, 14 Hours, Niagara, The Racers/ Such Men Are Dangerous, The Bottom of the Bottle/ Beyond the River, 23 Paces to Baker Street, Woman Obsessed, e Circus World/ The Magnificent Showman (também romântico e passado numa companhia de circo com temas de faroeste); suas comédias consistem em The Witching Hour, Go West Young Man, You're in the Navy Now/ U.S.S. Tea Kettle, and North to Alaska. War/ service films include Come On Marines, The Lives of a Bengal Lancer, The Real Glory, Sundown, Ten Gentlemen from West Point, Wing and a Prayer, Youre in the Navy Now/ U.S.S. Tea Kettle, The Desert Fox/Rommel—Desert Fox, e Raid on Rommel; Ainda realizou filmes de espião, como 13 Rue Madeleine and Diplomatic Courier assim como dramas aventureiros como China Girl, Down to the Sea in Ships, Prince Valiant, Legend of the Lost, e The Last Safari.



(Kingsley Canham, em The Hollywood Prefessional – Volume One – Michael Curtiz, Raoul Walsh, Henry Hathaway; Nova Iorque: A. S. Barnes & Co.; 1973; pp. 139-145; Tradução: Yuri Ramos)