O texto que segue é um
dos complementos literários do álbum “Cantigas numa língua antiga”, de Amália
Rodrigues. Curto, mas preciso, o propósito de republicá-lo aqui está em evocar
estes conceitos tão caros que se referem ao que seria, de fato, o fado e o
fadista e à relação intrínseca disto tudo com o povo português. É interessante
também ressaltar a contraposição, irônica mas sensata (e com a qual concordo
plenamente), que o autor faz, a partir de seus conceitos, entre os
greco-latinos e os anglo-saxônicos.
***
Amália:
Vox Populi
No
fado está todo o sofrimento. Toda vida até à morte. Porque o fado é acima de
tudo o amor - e o que é o amor senão
vida-morte? A descoberta da terrível, inefável fronteira. Mors Amor escreveu
Verlaine. Aqueles a quem o grande amor algum dia sorriu - não estremeceram eles?
Não descobriram eles por trás do mais belo sorriso o rictus aterrador de uma
caveira? Espero não estar a ser lúgubre. Antes creio que seria infantil fechar
os olhos à realidade do fim terrível, inaceitável, que, para os crentes, como Amália
tem que ser um princípio. Também não vou ao ponto de pensar que o fado, como a
saudade, são criações, conceitos, vivências exclusivamente portuguesas que mais
nenhum povo pudesse compreender e compartilhar. São universais. Mas parece que
há povos, como os greco-latinos, que têm mais consciência, ou, pelo menos, mais
sensibilidade ao amor, ao sofrimento, à morte. Os anglo-saxônicos,
especialmente os americanos, esforçam-se por ignorar, disfarçar o amor, a morte
e o sofrimento. Fazem seus enterros pela calada da noite, para que ninguém veja.
(Os portugueses fazem longos, incômodos velórios, muitas vezes com hipocrisia
ou morbidez). Quanto ao amor e ao sofrimento, os americanos resolvem o problema
eliminando-os com drogas, divórcios, vibradores, corrida ao dinheiro, cultos
esotéricos e movimentos de libertação (da mulher e, agora, do homem).
O
fadista, que talvez o português por excelência, não quer “libertar-se”. Não
estou a falar do falso fadista que não sente nada e não percebe nada. Estou a
falar de um fadista arquétipo e estou a pensar em Amália Rodrigues. Amália,
grande trágica, grande cantora, canta a vida toda, canta vida adulta - por isso
não pode deixar de cantar o sofrimento, a morte, as cadeias da saudade e a
condição humana e, por fim, a libertação através do canto, a poesia.
Quem
se pode admirar que Amália cante Camões? Ou queriam o Camões muito bem arrumadinho
nas bibliotecas das universidades para deleite estéril de professores sem
coração? No essencial e dando a palavra fadista a sua maior, universal,
dimensão, Camões é um fadista. Fadista não só porque Camões é o português por excelência
mas também pelas raízes etimológicas da palavra “fado”: destino, tragédia. Portuguesa
e Universal (como é que uma portuguesa viva, artista, pode deixar de o ser e de
ser universal ao mesmo tempo?) também é Amália Rodrigues. Muito provavelmente a
maior cantora do nosso tempo, e como tal reconhecida. Tudo, desde os timbres da
sua voz, que nos faz estremecer, até a inteligência com que escolhe as letras e
músicas e a sua inteligência interpretativa, faz de Amália uma enorme artista.
A voz de Amália é hoje para milhões de pessoas, em Portugal e pelo mundo em
pedaços repartida, a voz do desejo, da ternura, da alegria, gaiata e brejeira,
da tristeza orgulhosa, da saudade que não se envergonha, do amor adulto que afinal
é um amor louco, da lucidez. É a voz do povo. A sua melhor voz.
Carlos Barbosa de
Carvalho
Vila do Conde, Julho 1977