domingo, 1 de outubro de 2017

Amália: Vox Populi, por Carlos Barbosa de Carvalho




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          O texto que segue é um dos complementos literários do álbum “Cantigas numa língua antiga”, de Amália Rodrigues. Curto, mas preciso, o propósito de republicá-lo aqui está em evocar estes conceitos tão caros que se referem ao que seria, de fato, o fado e o fadista e à relação intrínseca disto tudo com o povo português. É interessante também ressaltar a contraposição, irônica mas sensata (e com a qual concordo plenamente), que o autor faz, a partir de seus conceitos, entre os greco-latinos e os anglo-saxônicos.



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Amália: Vox Populi



No fado está todo o sofrimento. Toda vida até à morte. Porque o fado é acima de tudo o amor -  e o que é o amor senão vida-morte? A descoberta da terrível, inefável fronteira. Mors Amor escreveu Verlaine. Aqueles a quem o grande amor algum dia sorriu - não estremeceram eles? Não descobriram eles por trás do mais belo sorriso o rictus aterrador de uma caveira? Espero não estar a ser lúgubre. Antes creio que seria infantil fechar os olhos à realidade do fim terrível, inaceitável, que, para os crentes, como Amália tem que ser um princípio. Também não vou ao ponto de pensar que o fado, como a saudade, são criações, conceitos, vivências exclusivamente portuguesas que mais nenhum povo pudesse compreender e compartilhar. São universais. Mas parece que há povos, como os greco-latinos, que têm mais consciência, ou, pelo menos, mais sensibilidade ao amor, ao sofrimento, à morte. Os anglo-saxônicos, especialmente os americanos, esforçam-se por ignorar, disfarçar o amor, a morte e o sofrimento. Fazem seus enterros pela calada da noite, para que ninguém veja. (Os portugueses fazem longos, incômodos velórios, muitas vezes com hipocrisia ou morbidez). Quanto ao amor e ao sofrimento, os americanos resolvem o problema eliminando-os com drogas, divórcios, vibradores, corrida ao dinheiro, cultos esotéricos e movimentos de libertação (da mulher e, agora, do homem).

O fadista, que talvez o português por excelência, não quer “libertar-se”. Não estou a falar do falso fadista que não sente nada e não percebe nada. Estou a falar de um fadista arquétipo e estou a pensar em Amália Rodrigues. Amália, grande trágica, grande cantora, canta a vida toda, canta vida adulta - por isso não pode deixar de cantar o sofrimento, a morte, as cadeias da saudade e a condição humana e, por fim, a libertação através do canto, a poesia.

Quem se pode admirar que Amália cante Camões? Ou queriam o Camões muito bem arrumadinho nas bibliotecas das universidades para deleite estéril de professores sem coração? No essencial e dando a palavra fadista a sua maior, universal, dimensão, Camões é um fadista. Fadista não só porque Camões é o português por excelência mas também pelas raízes etimológicas da palavra “fado”: destino, tragédia. Portuguesa e Universal (como é que uma portuguesa viva, artista, pode deixar de o ser e de ser universal ao mesmo tempo?) também é Amália Rodrigues. Muito provavelmente a maior cantora do nosso tempo, e como tal reconhecida. Tudo, desde os timbres da sua voz, que nos faz estremecer, até a inteligência com que escolhe as letras e músicas e a sua inteligência interpretativa, faz de Amália uma enorme artista. A voz de Amália é hoje para milhões de pessoas, em Portugal e pelo mundo em pedaços repartida, a voz do desejo, da ternura, da alegria, gaiata e brejeira, da tristeza orgulhosa, da saudade que não se envergonha, do amor adulto que afinal é um amor louco, da lucidez. É a voz do povo. A sua melhor voz.



Carlos Barbosa de Carvalho

Vila do Conde, Julho 1977