Seguem abaixo algumas
observações curtas sobre filmes relativamente recentes, que estavam ou estão
nos cinemas brasileiros nos últimos tempos.
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The
Post – A Guerra Secreta (2017)
O novo Spielberg se assemelha um pouco com Ponte de
Espiões (2015), até mesmo nos defeitos: o mesmo Tom Hanks (ou melhor, o
onipresente Tom Hanks) envolvido em intrigas internacionais, a base do enredo
em fatos reais e o consequente tom laudatório em relação aos heróis da vida
real, que, nas tendências do melodrama spielberguiano, podem se tornar um
defeito grave, mesmo que pontual, para o filme.
E se há estas semelhanças com Bridge of Spies, aqui Tom
Hanks não é o herói habitual, mas uma espécie de coadjuvante proeminente que
auxilia no desenvolvimento da verdadeira heroína, Meryl Streep (que, aliás,
está inabitualmente bem no papel), uma editora do The Washington Post que, após
a morte do marido, teve de comandar o jornal, se vendo muito deslocada nessa função,
sem coragem para enfrentar os mandos e desmandos de seus assessores mais
próximos com força e liderança. No fundo, o filme é, neste sentido, a crônica
da vitória de Streep sobre seus medos pessoais e em relação ao trabalho. Toda a
trama se subordina a isso, o que parece bastante promissor: no fim das contas,
pois o filme trata de uma polêmica acerca da publicação de material sigiloso
sobre a Guerra do Vietnã, toda a celeuma entre nações, que envolvia a vida de
milhões de pessoas, é uma espécie de joguete para propiciar o amadurecimento
existencial de uma mulher solitária e considerada covarde.
No entanto, Spielberg erra ao fazer disso tudo “uma
vitória das mulheres” e apequenar os feitos de Meryl forçando para que eles
parecessem, em muitos momentos, uma mera revolta contra o patriarcado. O
amadurecimento pessoal, em todas as suas complexidades, acaba se tornando
subordinado às questões de gênero. A descida das escadas do tribunal, no fim do
filme, com a atriz em porte glorioso descendo as escadas em câmera lenta, sob os olhares
de várias mulheres de idades e cores diferentes é uma prova desta pequenez
fabricada e também de uma estética fácil, descompensada, profundamente brega,
enfim, da qual o diretor se vale para constituir certos clímaces da obra. O
mesmo acontece, apesar que de modo diverso, no epílogo do filme. São momentos
quase vergonhosos, mas pontuais, o que permite com que o resto da trama caminhe
bem e se torne profundamente instigante, principalmente durante o período de
dúvida entre a publicação ou não dos documentos sigilosos, que corre com
bastante fluidez. A epígrafe, do Vietnã até as fotocópias dos documentos,
também me parece um momento de boa habilidade com as elipses: sons que se unem
uns aos outros se justapondo, como os disparos de armas que se unem ao som de
um helicóptero, denotando passagem de tempo, o que, inicialmente, me pareceu um
recurso pobre, mas que depois me convenceu. Em suma, um filme de erros pontuais
graves, mas não completamente irremediáveis. Muito melhor que o último filme do
diretor e superior ao pouco mais que medíocre Ponte de Espiões.
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Roda
Gigante (2017)
Gostaria muito, aqui, de poder defender um filme de Woody
Allen, neste momento em que todos parecem detestar as suas obras, não pelo que
elas dizem, mas pelos rumores dos crimes que o diretor possa ter cometido no
passado (coisa provavelmente infundada). Mas como estamos aqui para falar dos
filmes, do contrário estaríamos caindo nos mesmos erros daqueles que
criticamos, vamos ao que interessa: o novo Allen é um filme problemático,
descompassado. Curiosamente, se The Post tem pontuais desastres que o tornam
irregular, a irregularidade de Roda Gigante se dá de outra forma: há pontos
altos quase sublimes, mas eles são bastante deslocados. O monólogo central de
Winslet é o ponto alto, na atuação, na sutileza da transição da iluminação. O
narrador-personagem tem seus bons momentos também, mas os seus monólogos, mesmo
bons, parecem dispensáveis no contexto da narrativa. O filme parece, nesta
estrutura, flertar um pouco com o humor em torno do absurdo (as repetidas cenas
de incêndio, meio desconexas com o todo da narrativa, mas concebidas como uma
espécie de marco, de espectro irônico que denota a tragédia). Nesta mesma via,
que caminha mais no realce de pontos soltos (para o bem e para o mal) do que
numa continuidade mais homogênea, há momentos que, na caricaturalização de
Winslet como ex-atriz medíocre e dona de casa infeliz, delineiam o caráter
tragicômico da história. O grande problema de muitos destes momentos é justamente
este caráter caricatural, do qual também advém certa forma desconjuntada de
delinear a veia teatral das atuações. A mise-en-scène padece do mesmo mal, a gerar certa claustrofobia que recorda os piores momentos de Kazan (Uma Rua Chamada
Pecado). Entre as recentes tragicomédias que fez sobre mulheres em crise
existencial, Woody Allen acertou muito mais em Blue Jasmine. De qualquer modo,
este Roda Gigante não é completamente descartável e, como já citado, conserva
muito bons momentos. Mesmo assim, é inferior à maioria da produção que Allen
vem realizando, como seu penúltimo e grande filme, Café Society. Esperemos por
A Rainy Day in New York, que parece ser muito bom, e que, por causa das
recentes polêmicas e pela covardia de muitos, terá dificuldade de distribuição.
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Além
das Palavras (2016)
Este é um filme menos recente, muito aclamado por uns,
desconhecido por outros. Biografia realizada por Terence Davies sobre Emily
Dickinson, é um desfile de afetações vendidas com certo ar sublime. A fórmula
basicamente gira em torno de conduzir a narrativa sobre vida da autora numa coleção
de crônicas, em que cronologicamente se dispõe uma série de “momentos
sublimes”, numa aposta na beleza da vida comum e dos pequenos acontecimentos
que, na sua singeleza, ganham significado ímpar. Tudo isto, é claro, posto em
comparação com a própria obra da autora (que muitas vezes se mostra espelho das
relações sentimentais que Emily nutria com as pequenas cosias da vida), de modo
que, em repetidas ocasiões, são enxertados poemas da autora, em voz off, no
sentido de complementar certos fatos imediatamente decorridos nas cenas. Resumidamente: o filme se conduz por uma
espécie de colagem, mesmo que bem amarrada, de certas unidades estéticas que
evoquem este ar do quotidiano sublime.
Naturalmente, tudo isto se torna um exercício
extremamente repetitivo e enfadonho, além de muito pouco inteligente,
esteticamente fácil, como se, o tempo inteiro, se forçasse o espectador a
assistir à glória daqueles fatos, a tudo aquilo que eles exalam de beleza,
mesmo na sua ordinaridade. Mas é como, em Alguns Toureiros, diria João Cabral:
não se deve perfumar as flores, nem poetizar os poemas. O filme de Davies é a
poetização dos poemas, e, por isso, é um filme ruim. A tudo isso se junta a
atuação histriônica da protagonista que, na tentativa de relatar o temperamento
forte e intempestivo de Emily, acaba tornando a personagem (à primeira vista interessante)
uma mulher insuportável.
Salvam-se alguns momentos bonitos, os menos forçadamente
impostos como tais. Mas o conjunto continua fraco.
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A
Forma da Água (2017)
É até um pouco improdutivo ter de falar sobre um filme de
Guillermo del Toro, um cineasta que nunca teve verdadeira relevância, mas assisti
há poucos dias a este, e acho que se enquadra neste exercício de relatar impressões
sobre filmes recentes em torno dos quais foi feito algum alarde.
Há, aqui, um gosto
pelas obviedades como se isto potencializasse a fantasia, ou como se esta fosse
não a construção detalhada de um mundo alegorizado, mas um agregado de
caricaturas, de “pequenos monstros”, pequenos objetos excêntricos que parecem
só ter validade por esta excentricidade. Assim, para acompanhar as cores da
pele do monstro da lagoa negra (quem dera que fosse o original), um mundo cor
de musgo é erigido, não numa complementaridade ao protagonismo do personagem,
mas numa espécie de redundância e de afetação bastante descuidada. Para
acompanhar o peixe-homem, o exército dos excluídos como ele: sua namoradinha
muda, uma negra, um gay e um estrangeiro (e meio comunista)! Qualquer sistema
de cotas se invejaria deste conto de Guillermo del Toro. Há também o vilão,
tratado de modo bem maniqueísta: uma espécie de adulto imaturo e incompetente
que, por isso, se torna tirano e assediador de mulheres (um tema para o Oscar).
Além disso, há momentos de total gratuidade, como a sequência de apresentação
do quotidiano da protagonista e a cena da expulsão, primeiro dos negros e
depois do coadjuvante homossexual, de um bar por ali ser “um local de família”.
Apesar de tudo, há um bom momento a se recordar, onde
reside algo de sensível e interessante: a cena do monstro a assistir The Story
of Ruth no cinema. É claro que há aí um tributo cinéfilo, por parte do diretor,
que poderia ser criticado. Mas me parece bem encaixado, bonito. No entanto, é um
ponto isolado no mar de lodo, no edifício construído para “o filme do Oscar”.
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Viva:
A Vida é uma Festa (2017)
Coco (ou Viva: A Vida é uma Festa) é um filme de
espíritos, de fantasmas, como também era, ao seu modo, Inside Out. Ambos se
baseiam em conflitos pessoais e familiares que só serão resolvidos a partir de
uma jornada heroica por um “outro mundo”, um mundo de espectros que, de alguma
maneira, interferem no itinerário quotidiano dos indivíduos “de carne e osso”. A
construção deste mundo e de seu caráter alegórico (seu espelhamento em relação
à realidade dos vivos, no caso de Coco) é crucial em ambos os filmes, mas
parece que Divertida Mente, diante desta nova obra, torna-se uma espécie de
ensaio para o que viria: se o principal problema, em Inside Out, era a
edificação desconjuntada dos elementos que compunham o que representa a mente
da protagonista, em Coco o mundo do além e todas as passagens que o compõem,
seja narrativa ou visualmente, são bem concatenadas e perfeitamente conformes ao
conjunto geral da obra. Curioso é ressaltar que isso ocorre num roteiro ainda
mais complexo que o do filme anterior, cheio de reviravoltas e de uma profusão
inabitual de coadjuvantes, o que, aparentemente, geraria mais dificuldades para
a poda de possíveis pontas soltas.
A comparação entre os dois filmes não termina por aí: o
tema da memória (e, mais especialmente, de sua perda), é bastante caro aos
dois. Ambos contêm cenas importantes neste sentido, onde a morte de um
coadjuvante advém (literal, não metaforicamente) de seu esquecimento: no filme
recente, um habitante do mundo dos mortos, ao ser completamente esquecido por
sua família ainda viva, sofre uma segunda morte, desaparece definitivamente; na
animação de 2015, há a famosa cena (provavelmente o melhor momento do filme)
onde um amigo imaginário da protagonista suicida-se, atirando-se a um poço do
esquecimento, para ajudar a Alegria a sair daquele local.
No entanto e a despeito destas semelhanças, em Inside Out
os sentimentos são materializados em co-protagonistas, mas, contraditoriamente,
o filme não conserva, como deveria, clímaces onde a irrupção das intempéries
sentimentais da personagem principal se mostra comunicativa a ponto de comover
as plateias. Já em Coco, o esquecimento e também o rancor circundam a obra de
modo mais imaterial, de certa forma indireto, como se fosse um espírito que
ronda a narrativa, um problema inconcluso que sabemos que está ali, mas do qual
momentaneamente nos esquecemos para, nas nossas mentes, darmos lugar à jornada
heroica do protagonista, inicialmente impulsionada por outros motivos. Quando,
no fim do filme, nos tornamos novamente conscientes do significado de todo o
itinerário percorrido; de que aquela batalha era contra o inimigo recôndito,
que tudo havia sido feito para remediar o esquecimento, o esquecimento de Coco,
a bisavó do protagonista, que precisava de um impulso para que a idade não a
impedisse de recordar a memória de seu pai; enfim, quando nos tornamos cientes
disso tudo, do significado de todos os detalhes daquela trama um tanto complexa
para um filme infantil, é inevitável que nos sintamos profundamente tocados
quando, no fim, a senhorinha tão velha, quase sem forças, consiga lembrar-se do
pai pelas palavras cantadas pelo netinho que foi ao Hades buscar a única forma
de manter viva e unida a sua família, seja aqui ou seja no além: aquela
pequenina cação, Remember me, que até os centenários não poderiam esquecer,
porque as grandes obras de arte ficam inscritas no coração de todos.
Coco pode não ser a obra-prima que ainda se espera da
Disney/Pixar; pode perder algum tempo em preferir a construção de um belo happy
ending em detrimento de um filme de uma singeleza mais contínua; pode conservar
os problemas estéticos habituais das animações em cgi e ser esteticamente
uniformizado com as demais produções da Pixar, o que nos dá certa nostalgia dos
tempos de maior riqueza visual. Mas, certamente, é muito bom acerto, um
emocionante acerto.