Mahal
(1949)
Existe
algo de curioso na relativa popularidade que o tema das casas mal-assombradas
parece ter no cinema indiano: há o bastante referencial, mas ainda pouco
conhecido Khudito Pashan, um terror do início dos anos 1960 de Tapan Sinha; há
também o já absolutamente clássico Sala de Música, de Satiajit Ray; e até o
filme mais popular do grande Guru Dutt, Flores de Papel, acaba se desenvolvendo
nos meandros desta seara, com o flashback do protagonista (que norteia
narrativamente o filme) sendo despertado por um estúdio de filmagens vazio,
evocador de fantasmas do passado.
Este
Mahal, primeiro filme de Kamal Amrohi, que consolidou sua carreira
cinematográfica muito mais como roteirista do que como diretor (ajudou a compor
os diálogos de um dos maiores clássicos de Bollywood, Mughal-E-Azam), é mais um
exemplar deste subgênero um tanto involuntário: um homem solitário se muda para
uma mansão abandonada há décadas, onde antes morava um casal que se desgraçou
por males de amor. A história dos antigos donos é contada por um caseiro do
local, que esclarece sobre o amor interrompido dos dois: uma esposa que sempre
aguardava vinda de seu marido para a casa, em vão. Um dia, em viagem, ele morre
afogado nas águas de um rio, dizendo, em suas últimas palavras, que o destino
não interromperia o seu amor. Dizia, evocando o nome da esposa: “Jamini, eu
voltarei”. Jamini, a viúva, vai, então, buscar consolo contemplando o rio que
levou o seu amor. Numa noite, é encontrada morta, afogada nessas águas. Hari Shankar,
o protagonista, ouve a história, atento, e depois vai repousar num outro
cômodo, quando, acidentalmente, ao abrir uma porta para se deslocar, um quadro
do antigo dono da casa é derrubado, revelando sua face: era a mesma de Shankar.
A profecia se cumprira: ele voltou.
A
partir dessa deixa o mote do filme está lançado: o tema da reencarnação, da
natureza do duplo, o ser que encarna outro para completar o seu destino ou para
repetir sua sina se torna, naturalmente, algo central. Por isto é também
inerente a Mahal a estrutura da tragédia, do fado irremediável, da prisão, seja
material, seja espiritual. E isto é exposto com certo engenho em seus cenários,
aparentemente fluidos, mas notadamente claustrofóbicos, os quais dispõe e
constrói numa espécie de glosa àquilo que é vivido pelas almas atormentadas dos
seus personagens: não importa para onde fugir, há vários caminhos que podem ser
todos conectados, mas que, no fim, terminam no mesmo lugar.
O
primeiro movimento neste sentido é aquele do momento em que Shankar começa a
discernir as vozes do espírito de Jamini, que clama pelo amante, agora
reencarnado: o protagonista parece ensaiar percorrer diversos cômodos da casa,
mas, andando por alguns caminhos, chega no mesmo cômodo de onde saiu. Há outros
momentos que demonstram esta mesma característica na disposição dos espaços,
mas provavelmente menos óbvios. Por exemplo, há a memorável sequência em que o
suposto espírito da esposa morta guia o protagonista por uma série de passagens
secretas contidas na mansão, sem que se destaque aí propriamente a surpresa com
o segredo de tais locais, na evocação de uma certa naturalidade na fluidez
daqueles espaços, percorridos sempre a compasso de diálogos ou monólogos que confrontem
os personagens com o passado (e com sua imagem no presente), o que, de certa
maneira torna o percurso espacial, físico, um percurso também espiritual,
espelhado pelo primeiro.
É curioso que haja, nessa peculiaridade da
mise-en-scène de Amrohi, uma espécie de itinerário: a própria disposição
temporal destes percursos espaciais é também um percurso, narrativo,
naturalmente, onde cada um destes movimentos torna-se simbólico e onde cada um
desses símbolos gerados se relaciona com os demais. É deste modo que o fim do
filme ganha um realce interessante: dois corpos que se afastam em sentidos
opostos, o movimento simples e indicativo da inevitável tragédia final, que é a
consequência dos intermináveis rodeios por passagens secretas e cômodos
interligados: não importa a infinidade dos caminhos, o destino é inevitável.
Talvez
seja curioso que este primeiro trunfo da direção de Amrohi seja, em algum
ponto, também uma doença, porque em certos momentos o filme parece cair em
certa lentidão ou em alguma tautologia que cause impressão um pouco letárgica:
há pelo menos um número musical de Jamini que parece alongado demais. Apesar
disso, a repetição constante de uma mesma canção, o leitmotiv entoado pelo
espírito da viúva, num chamado por Shankar, não é um problema, ao contrário, é
algo bem posto, na indicação da constância do vulto que assombra a alma do
protagonista, sempre conclamando-o no momento certo a voltar para os “braços de
quem o ama” (se é que mortos têm braços).
E
se há um itinerário trágico na mise-en-scène de Mahal, há também, naturalmente,
uma série de mecanismos dispostos no roteiro que são fundados para propiciar
esta mesma natureza de tragédia. Há, basicamente, uma ideia geral que rege a
história, como já dissemos, que é a do duplo, a da reencarnação. É
interessante, no entanto, a lição de Amrohi sobre isso e sobre como isso
fundamenta sua tragédia: em dado momento, o filme tem uma mudança drástica, e
de um terror espiritualista se transforma num suspense de tribunal. Da emoção
para a razão, do espírito para a matéria. A razão é a de que a esposa de
Shankar o acusara de a envenenar (quando na verdade sabemos que ela mesma
cometeu suicídio, com ciúmes da mulher que ele ama, o tal “espírito”). Durante
o julgamento, colhem depoimentos de todos, até mesmo de uma empregada da mansão
do réu, uma moça que sempre vivia com um véu cobrindo-lhe o rosto. Quando pedem
que se revele, percebe-se ser ela o suposto espírito! Tudo cai por terra: há
alguma coisa que ainda não sabemos, mas o que sabemos é que não há mais
fantasmas! A empregada revela que, quando vira o novo dono da mansão e se
lembrara de toda a história de amor que envolvia os antigos donos da casa,
pensou que nunca um homem poderia amá-la como o esposo afogado amou Jamini.
Decidiu então criar a ilusão de ser um espírito, a fim de seduzir Shanar a
perceber que sua sina era viver o amor que o afogado não viveu! Seria ela,
enfim, a mentora da reencarnação que nunca houve. Se Shankar era tão parecido
com o morto, que ela fizesse com que a profecia do falecido se perpetuasse
fingindo ser, também, uma espécie de reencarnação. Diz ela que iria revelar
tudo a Shankar, justo no momento em que a polícia veio prendê-lo por seu
suposto crime.
Depois
disso, Shankar é preso para ir à forca. Faz com que seu melhor amigo prometa
casar-se com a empregada farsante que, apesar de tudo, era o amor de sua vida.
Antes de sua execução, descobre-se o plano da suicida: liberta-se o herói.
Enfim, parece que o destino quer unir de novo não um casal de mortos
extraordinários e mitológicos, mas um casal comum, que apesar de grandes
desventuras, poderá finalmente se amar como qualquer outro.
Mas
quando Shankar chega em casa, seu amigo já havia cumprido a promessa: sua amada
já era casada. O herói se senta numa cadeira. Não há mais saída. Há ainda
alguns diálogos, algumas sugestões do velho amigo. Quando percebem, Shankar
estava morto, inexplicavelmente morto, com os olhos abertos, exatamente como quando
sentara. Entre venturas e desventuras, o destino estava finalmente selado: a
profecia se cumpriu, ele voltou; porque era de novo o mesmo desgraçado de
antes, no fundo estava diante da mesma tragédia de antes. E morre,
inexplicavelmente, como se o espírito lhe saísse, sem mais nem menos, do corpo.
Não era, enfim, um filme de tribunal. Era um filme de fantasmas.
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