quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Mahal (1949)





Mahal (1949)


Existe algo de curioso na relativa popularidade que o tema das casas mal-assombradas parece ter no cinema indiano: há o bastante referencial, mas ainda pouco conhecido Khudito Pashan, um terror do início dos anos 1960 de Tapan Sinha; há também o já absolutamente clássico Sala de Música, de Satiajit Ray; e até o filme mais popular do grande Guru Dutt, Flores de Papel, acaba se desenvolvendo nos meandros desta seara, com o flashback do protagonista (que norteia narrativamente o filme) sendo despertado por um estúdio de filmagens vazio, evocador de fantasmas do passado.

Este Mahal, primeiro filme de Kamal Amrohi, que consolidou sua carreira cinematográfica muito mais como roteirista do que como diretor (ajudou a compor os diálogos de um dos maiores clássicos de Bollywood, Mughal-E-Azam), é mais um exemplar deste subgênero um tanto involuntário: um homem solitário se muda para uma mansão abandonada há décadas, onde antes morava um casal que se desgraçou por males de amor. A história dos antigos donos é contada por um caseiro do local, que esclarece sobre o amor interrompido dos dois: uma esposa que sempre aguardava vinda de seu marido para a casa, em vão. Um dia, em viagem, ele morre afogado nas águas de um rio, dizendo, em suas últimas palavras, que o destino não interromperia o seu amor. Dizia, evocando o nome da esposa: “Jamini, eu voltarei”. Jamini, a viúva, vai, então, buscar consolo contemplando o rio que levou o seu amor. Numa noite, é encontrada morta, afogada nessas águas. Hari Shankar, o protagonista, ouve a história, atento, e depois vai repousar num outro cômodo, quando, acidentalmente, ao abrir uma porta para se deslocar, um quadro do antigo dono da casa é derrubado, revelando sua face: era a mesma de Shankar. A profecia se cumprira: ele voltou.

A partir dessa deixa o mote do filme está lançado: o tema da reencarnação, da natureza do duplo, o ser que encarna outro para completar o seu destino ou para repetir sua sina se torna, naturalmente, algo central. Por isto é também inerente a Mahal a estrutura da tragédia, do fado irremediável, da prisão, seja material, seja espiritual. E isto é exposto com certo engenho em seus cenários, aparentemente fluidos, mas notadamente claustrofóbicos, os quais dispõe e constrói numa espécie de glosa àquilo que é vivido pelas almas atormentadas dos seus personagens: não importa para onde fugir, há vários caminhos que podem ser todos conectados, mas que, no fim, terminam no mesmo lugar.

O primeiro movimento neste sentido é aquele do momento em que Shankar começa a discernir as vozes do espírito de Jamini, que clama pelo amante, agora reencarnado: o protagonista parece ensaiar percorrer diversos cômodos da casa, mas, andando por alguns caminhos, chega no mesmo cômodo de onde saiu. Há outros momentos que demonstram esta mesma característica na disposição dos espaços, mas provavelmente menos óbvios. Por exemplo, há a memorável sequência em que o suposto espírito da esposa morta guia o protagonista por uma série de passagens secretas contidas na mansão, sem que se destaque aí propriamente a surpresa com o segredo de tais locais, na evocação de uma certa naturalidade na fluidez daqueles espaços, percorridos sempre a compasso de diálogos ou monólogos que confrontem os personagens com o passado (e com sua imagem no presente), o que, de certa maneira torna o percurso espacial, físico, um percurso também espiritual, espelhado pelo primeiro.

 É curioso que haja, nessa peculiaridade da mise-en-scène de Amrohi, uma espécie de itinerário: a própria disposição temporal destes percursos espaciais é também um percurso, narrativo, naturalmente, onde cada um destes movimentos torna-se simbólico e onde cada um desses símbolos gerados se relaciona com os demais. É deste modo que o fim do filme ganha um realce interessante: dois corpos que se afastam em sentidos opostos, o movimento simples e indicativo da inevitável tragédia final, que é a consequência dos intermináveis rodeios por passagens secretas e cômodos interligados: não importa a infinidade dos caminhos, o destino é inevitável.

Talvez seja curioso que este primeiro trunfo da direção de Amrohi seja, em algum ponto, também uma doença, porque em certos momentos o filme parece cair em certa lentidão ou em alguma tautologia que cause impressão um pouco letárgica: há pelo menos um número musical de Jamini que parece alongado demais. Apesar disso, a repetição constante de uma mesma canção, o leitmotiv entoado pelo espírito da viúva, num chamado por Shankar, não é um problema, ao contrário, é algo bem posto, na indicação da constância do vulto que assombra a alma do protagonista, sempre conclamando-o no momento certo a voltar para os “braços de quem o ama” (se é que mortos têm braços).

E se há um itinerário trágico na mise-en-scène de Mahal, há também, naturalmente, uma série de mecanismos dispostos no roteiro que são fundados para propiciar esta mesma natureza de tragédia. Há, basicamente, uma ideia geral que rege a história, como já dissemos, que é a do duplo, a da reencarnação. É interessante, no entanto, a lição de Amrohi sobre isso e sobre como isso fundamenta sua tragédia: em dado momento, o filme tem uma mudança drástica, e de um terror espiritualista se transforma num suspense de tribunal. Da emoção para a razão, do espírito para a matéria. A razão é a de que a esposa de Shankar o acusara de a envenenar (quando na verdade sabemos que ela mesma cometeu suicídio, com ciúmes da mulher que ele ama, o tal “espírito”). Durante o julgamento, colhem depoimentos de todos, até mesmo de uma empregada da mansão do réu, uma moça que sempre vivia com um véu cobrindo-lhe o rosto. Quando pedem que se revele, percebe-se ser ela o suposto espírito! Tudo cai por terra: há alguma coisa que ainda não sabemos, mas o que sabemos é que não há mais fantasmas! A empregada revela que, quando vira o novo dono da mansão e se lembrara de toda a história de amor que envolvia os antigos donos da casa, pensou que nunca um homem poderia amá-la como o esposo afogado amou Jamini. Decidiu então criar a ilusão de ser um espírito, a fim de seduzir Shanar a perceber que sua sina era viver o amor que o afogado não viveu! Seria ela, enfim, a mentora da reencarnação que nunca houve. Se Shankar era tão parecido com o morto, que ela fizesse com que a profecia do falecido se perpetuasse fingindo ser, também, uma espécie de reencarnação. Diz ela que iria revelar tudo a Shankar, justo no momento em que a polícia veio prendê-lo por seu suposto crime. 

Já aí há algo interessante sobre o itinerário trágico: mais uma vez, se o tentamos desregular, para produzirmos nós mesmos o happy ending, algo acontece para dar conta de regulá-lo novamente. Para impedir uma reencarnação, a do casal morto, surge outra, a da esposa fatalmente abandonada, que morre, agora não por amor, mas por ódio.

Depois disso, Shankar é preso para ir à forca. Faz com que seu melhor amigo prometa casar-se com a empregada farsante que, apesar de tudo, era o amor de sua vida. Antes de sua execução, descobre-se o plano da suicida: liberta-se o herói. Enfim, parece que o destino quer unir de novo não um casal de mortos extraordinários e mitológicos, mas um casal comum, que apesar de grandes desventuras, poderá finalmente se amar como qualquer outro.

Mas quando Shankar chega em casa, seu amigo já havia cumprido a promessa: sua amada já era casada. O herói se senta numa cadeira. Não há mais saída. Há ainda alguns diálogos, algumas sugestões do velho amigo. Quando percebem, Shankar estava morto, inexplicavelmente morto, com os olhos abertos, exatamente como quando sentara. Entre venturas e desventuras, o destino estava finalmente selado: a profecia se cumpriu, ele voltou; porque era de novo o mesmo desgraçado de antes, no fundo estava diante da mesma tragédia de antes. E morre, inexplicavelmente, como se o espírito lhe saísse, sem mais nem menos, do corpo. Não era, enfim, um filme de tribunal. Era um filme de fantasmas.



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