segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Descoberta de Guru Dutt, por Charles Tesson


Resultado de imagem para guru dutt



DESCOBERTA DE GURU DUTT 


Há apenas um nome dentro do cinema indiano capaz de ultrapassar a velha oposição entre filmes comerciais e filmes independentes. No início dos anos 50 (e mesmo dos anos 30 até a atualidade), existiram alguns cineastas que, conciliando um sistema econômico e estético, realizaram um verdadeiro trabalho de mise-en-scène. Esses cineastas ainda não foram descobertos e Guru Dutt é um deles. Este contribuiu para o cinema musical indiano, cantado e dançado, com uma grande qualidade de execução e um extremo cuidado. Mais do que um refinado esteta, é um cineasta suntuoso e decadente. Ele não conta histórias ou propõe temas, tem apenas obsessões que o torturam e nos oferece delírios megalomaníacos (a perseguição do fracasso e seu correspondente fantasma na celebridade post morum). Seus filmes não são autobiográficos nem premonitórios. É antes a sua vida que se assemelha progressivamente a seus filmes. O destino do Guru Dutt é inventar histórias para vivê-las em seguida. Ator e diretor, ele também se converteu (tragicamente) em um personagem de seus filmes. 

A vida de Guru Dutt foi um melodrama sombrio. Ele nasceu em 1925 e muito jovem entrou na Academia de Arte Uday Shankar, onde ensinou dança. Aos 20 anos, ele se envolveu com os estúdios da empresa Prabhar, em Puna. Dirigiu seu primeiro filme aos 26 anos no contexto do cinema comercial hindu e fundou sua própria produtora (a Guru Dutt Films Private Limited) e começou a interpretar seus filmes. Autor completo. Um caso único dentro do sistema. Ele se cerca de fiéis colaboradores: o roteirista Abrar Alvi, o músico S. D. Burman, o operador V. K. Murthy, sem esquecer o ator Johnny Walker (seu número musical em Sede Eterna, no qual ele elogia as vantagens de uma loção capilar é inesquecível). A esposa de Dutt, Geeta Roy, famosa cantora, emprestará sua voz a todas as músicas de seus filmes. Guru Dutt se arruinou em 1959 com seu sétimo filme, Flores de Papel. Em 1962, ele produziu e interpretou Sahib bibi aur ghuúzm, mas, ressentido com o fracasso de seu filme anterior, preferiu confiar a mise-en-scène ao roteirista. Guru Dutt, em seguida, continua sua carreira de ator no cinema comercial, até cometer suicídio em 1964, com 39 anos de idade. 

Os três filmes mais conhecidos de Guru Dutt (Sede Eterna, Flores de Papel e Baharen Phir Bhi Aayengi) têm um ponto em comum: Waheeda Rehman. Atriz e estrela fabricada peça por peça por Dutt. O outro ponto em comum é a descoberta imediata de que um cineasta como Dutt só poderia realmente se expressar dentro de uma economia de estúdio: ele precisa de decorações gigantescas (colunatas de estuque...), estrelas, luzes que explorem ou escondam os contornos de seu rosto, filtros que, sorrateiramente, auxiliem o olhar para a câmera. Dutt trabalha por fragmentos e fetiches: entre o primeiro plano de um rosto e todo o plano de um corpo, a luz não realiza raccord jamais. Destes três filmes, Sede Eterna é sem dúvida o mais belo e coerente. É o retrato do artista como um poeta amaldiçoado: Vijay (Guru Dutt), autor de canções, se encontra dividido entre uma prostituta (Waheeda Rehman) e uma velha amiga de escola casada com um editor rico que ignora seu talento. Quando todos o consideram morto, o editor considera apropriado publicar seu trabalho e o poeta se torna uma celebridade. Na última sequência, comovedor fragmento de antologia, o poeta retorna a um teatro no qual se celebra o primeiro aniversário de sua morte. Ele então grita seu ódio para a mesquinhez deste mundo sórdido. Ele canta também (em uma declaração com voz sublime) antes que a multidão o tome por impostor e o expulse. Quando parece que as pessoas vão reconhecê-lo, ele se afasta com desdém. Como um personagem de um Devotional Film, acompanhado pela mulher amada (Waheeta Rehman), alcançava esferas artísticas mais elevadas. 

Flores de papel é igualmente de um narcisismo sombrio. Traça a vida de um cineasta interpretado por Guru Dutt. Acompanhamos o auge de seu sucesso, momento em que conhece uma atriz (Waheeda Rehman: um episódio diretamente inspirado em sua vida), até o seu fracasso e seu progressivo afastamento dos estúdios da companhia. O início do filme (o velho que entra no estúdio vazio e se lembra de sua carreira) e o final (sua morte) são sublimes. Flores de papel não é tanto uma ilustração de A Star is Born como a atualização da angústia de saber que a estrela modelada por um cineasta pode continuar a ser sem ele. A esse respeito, deve-se acrescentar que o conjunto Dutt/Rehman, tão famoso na Índia quanto o casal Sternberg/Marlene, levará a cabo esse roteiro de fidelidade e abandono até o fim. Sabemos que, após a morte de Guru Dutt, Waheeda Rehman interrompeu abruptamente sua carreira de atriz. Nesse sentido, o momento mais bonito do filme é quando o cineasta fracassado retorna ao estúdio e, anonimamente, é empregado como figurante para encontrar sua estrela face a face e passar no teste de seu olhar. 

Como regra geral, todos os planos que Guru Dutt interpreta são muito cuidadosos: se enquadra à Welles, adota posições inverossímeis. O resto deixa algo a desejar. A partir do momento em que a música começa, a câmera se torna irreconhecível e o filme atinge uma beleza que corta a respiração. Em um único plano, a face de uma estrela que atrai toda a luz se coloca bruscamente contraluz. A cena em que o cineasta entra no estúdio e diz a sua atriz que ele não pode amá-la porque é casado é magnífica. Para mantê-lo, ela declara seu amor e canta. Naquele momento, ouvimos a voz de Geeta Roy, a esposa de Guru Dutt, que dubla as canções da protagonista. Nunca a dublagem, o encontro entre uma voz diferente e uma imagem diferente, capturou de tal forma a situação fictícia que se desenvolve. O último filme produzido por Dutt (Baharen Phir Bhi Aayengi) está longe de ser a obra-prima de que Micciollo fala. Acusa sobretudo as limitações do filme anterior. O excesso de delírio se obscurece às vezes em uma miseen-scène pouco inventiva, sabiamente acadêmica, que reduz consideravelmente o conteúdo de seu cinema. Dutt apenas dirigiu as cenas musicais deste filme (que são muito bonitas). O remake do filme, no entanto, é importante. Não é nada mais, nada menos que a versão comercial de A sala de música, de Satyajit Ray: o declínio de uma casa e da aristocracia. O filme retoma a construção de Flores de Papel e Dutt faz o papel de testemunha servil do declínio. O dono da casa gasta seu tempo e dinheiro com as bailarinas da corte. Sua esposa, para reconquistá-lo, concorda em se encerrar juntamente com ele em sua casa até a morte chegar. Meena Kumari, outra figura mítica do cinema indiano, porque teve o mesmo destino de seu personagem, interpreta a mulher. Ao ver o filme, sonhamos como teria sido se não tivéssemos na direção a sombra de um Dutt diminuído por seus fracassos e pelo fato de que seu trabalho, considerado demasiado comercial, não foi jamais tomado a sério pela crítica. Entretanto, sem nenhuma dúvida, se trata de um cineasta eminentemente atrativo e com talento. Mergulha o espectador em uma vertigem insensata em que a vida, o ator e o personagem estão perpetuamente implicados. Na qual cada vez o espectador sai subjugado e seduzido. 


 Charles Tesson, «Découvrons Guru Dutt e Ritwik Ghatak! », Cahiers du cinéma, nº 343, janeiro de 1983. * Tradução: Beatriz Saar

Nenhum comentário:

Postar um comentário