terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Os Pássaros (1963)


 




Eu acredito que a nossa novíssima cinefilia, muito culta, regada a Cahiers e a Positif, profunda conhecedora do cinema americano, nunca deu o lugar devido a Alfred Hitchcock. Não que não haja admiração por ele. Não que o considerem menos que "um grande diretor". Mas, por algum motivo, me parece que nenhum deles diz o que é preciso: Hitchcock é muito superior a quase tudo. Infinitamente superior a quase todos. Senão o maior diretor de todos os tempos. Eu digo isto porque estou lá pela décima vez assistindo aos minutos finais dos Pássaros. Não sejam hipócritas... ninguém consegue repetir algo desta monta. Um filme tão imaginativo, em que quase nada se vê: imagens e cenários que se repetem, que permanecem claustrofobicamente inertes, como imagens vazias, enquanto algo se move do lado de fora e tudo se ouve. Esta é a sua tensão: ouvir os ruídos de uma tragédia inevitável, mas não saber quando ela virá. 

E quando ela vem? Quando ela vem, surge uma outra coisa que ninguém,  exceto Hitchcock, faria: o exagero que transmuta o resultado dos medos de uma cidade inteira numa revoada barroca, descomunal, de pássaros aparecidos como que por ira divina, uma oitava praga egípcia. E, ao contrário de em quase todos os seus filmes, aqui este mistério não se resolve: ninguém pode vencê-los, os pássaros. 

Até por isso, este me aprece o filme mais pessoal, mais hitchcockiano que Hitchcock poderia fazer: é a tensão da sua força criativa invencível contra o mundo. O mundo é a cena e a sua força como construtor, realizador e artista é a praga com a qual ele põe à prova esta realidade. A burila, quebra, destrói. Estes pássaros são a marca da sua personalidade ególatra tão criticada, mas que propiciou a genialidade de sua obra. Durante décadas ele havia edificado, neste intento, imagens de uma beleza curiosa e desproporcional, parecendo propositalmente fabricadas para afirmar a sua força como senhor de sua arte. Mas é somente agora, neste filme, que ultrapassa os limites do imanente e se acha no direito divino de amaldiçoar a humanidade. 

Não querendo discordar muito de sua elevada autoestima, acredito que o mínimo que devemos a um homem como este é reconhecer, como em tudo aquilo que reluz uma centelha da Beleza suprema, a glória inusual e superlativa dos seus filmes. Não fazer isto é perder tempo querendo descobrir falsas pepitas de ouro ou discutindo firulas. 


In Facebook, 08/02/2021

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