O texto que segue é uma
tradução ao Manifesto del Nuevo Cancionero, texto historicamente importante
para a história da música latino-americana e, mais especialmente, argentina. Se
se trata de um manifesto com algum cunho político oculto (o de conter o imperialismo
cultural americano), este acabou servindo, se é que de fato existiu, para os
propósitos estéticos de seus idealizadores, sem nunca ocorrer o contrário (a
arte não se submetia à política, mesmo que esta última, em seus propósitos, às
vezes a favorecesse). Trata-se, antes, de uma tentativa de preservação de
valores nacionais e da conservação, aberta a vanguardas, numa hermenêutica de
continuidade, de pressupostos estéticos já bem fundamentados e característicos
da música latina. Trata-se, portanto, de uma tentativa de burilar, dentro dos
limites da tradição, os artifícios estabelecidos por esta mesma tradição, a fim
de uma arte erguida em bases sólidas, mas não estagnada.
Se sabemos que o arcabouço musical luso-hispânico (ou
seja, ibérico) e seus descendentes (a música dos países colonizados por Espanha
e Portugal) acarretaram na melhor música popular da qual temos notícia (e,
sobre os motivos disso, explicarei numa outra ocasião), o Manifesto do Novo
Cancioneiro foi, por assim dizer, uma tentativa de conservar e aprimorar
elementos da melhor música do mundo, sem permitir que esta se tornasse nem item
exótico de cartão postal, ao manter suas raízes folclóricas, nem que se
deixasse degenerar pelas forças externas que se vinham impondo àquela altura (a
influência americanista).
***
Manifesto
do Novo Cancioneiro
A
busca de uma música nacional de conteúdo popular foi e é um dos mais caro
objetivos do povo argentino. Seus artistas, desde os alvores de uma expressão
popular própria, tentaram, com distinta sorte, incorporar a diversidade de
gêneros e manifestações das quais dispunha sua sensibilidade, com o propósito
de cantar a todo o país.
Já
Carlos Gardel, no início dos modernos meios de difusão, fez incursões como
autor e intérprete tanto no gênero nativo, onde começou sua relevância, como no
gênero típico cidadão, que encontrou no tango sua forma mais completa de
expressão. Outros gêneros, populares até então, como a valsa, a polca, etc.,
não se mostraram tão eficientes para traduzir o modo de ser e sentir das amplas
camadas populares do país crescente.
Na
busca de sua expressão, o artista popular adotou e recriou ritmos e melodias
que, por seu conteúdo e sua forma, se adaptam mais inteiramente ao gosto e aos
sentimentos do povo. Essa interrelação entre o artista criador e o povo
destinatário de suas obras deu nascimento ao tango que, penetrado do espírito
vivo das massas, seria desde então a canção popular por definição, dada a
proeminência cultural, política e social que, desde então, Buenos Aires teria
sobre o resto do país. A deformação geo-sociológica que este feito político
provocou em todas as ordens de vida do país devia alcançar também a música
nacional de inspiração popular.
Se
relega ao interior o homem, a paisagem e a circunstância histórica e o país
acentua sua fachada portuária, unilateral e, portanto, muitas vezes epidérmica.
Porque durante muitas décadas o país foi isso: um rosto sem alma, onde até o
tango, com sua palpitante crônica dolorosa (Contursi, Flores, De Caro, Los
Caló, Discépolo, Manzi e tantos outros facilmente identificáveis), reclamará em
suas noites insones o cerceamento do espírito nacional e a amputação feroz do
país total.
É
que o tango, refém de sua boa sorte, já havia caído do “anjo popular” para as
mãos dos mercadores e era forte moeda de troca para a exportação turística. Foi
aí que o condenaram a repetir-se em si mesmo, até estereotipar um país de
cartão postal, “farolito mediante”, alheio ao sangue e ao destino de sua gente.
E,
então, se perpetrou a divisão artificial e asfixiante entre cancioneiro popular
cidadão e cancioneiro popular nativo de raiz folclórica. Interesses escusos
alimentaram, até a hostilidade, esta divisão que se faz mais acentuada em
nossos dias, levando a autores, intérpretes e público a um antagonismo estéril,
criando um falso dilema e ocultando a questão principal que agora está plantada
com mais força que nunca: a busca de uma música nacional de raiz popular, que
expresse o país em sua totalidade humana e regional. Não por meio de um único
gênero, o que seria absurdo, mas pela ocorrência conjunta de suas variadas
manifestações (quanto mais formas de expressão tenha uma arte, mais rica será a
sensibilidade do povo ao qual ela se dirige).
Não
há, pois, para o homem argentino, um dilema entre tango e folclore, música cidadã
e música regional, tipismo ou nativismo. O dilema real do homem argentino é, no
plano de seus interesses, ou o desenvolvimento vital de sua própria expressão
popular e nacional na diversidade de suas formas e gêneros, ou estancamentos
infecundos diante da invasão das formas decadentes e descompostas dos híbridos
forâneos. Há país para todo o cancioneiro. Só se falta integrar um cancioneiro
para todo o país.
Uma
tomada de consciência: o auge da música nativa
Nos
momentos atuais, Buenos Aires e todo o país assistem a um poderoso
ressurgimento da música popular nativa, motivada pela inquietude de interpretar
este fenômeno. Há quem se incline a considerar este ressurgimento como uma
moda, à maneira de tantas outras que eventualmente assolam a grande capital
cosmopolita, porto de todos os portos.
Mas uma análise mais atenta de nossa realidade não pode senão nos
afastar desta hipótese. Nós afirmamos que este ressurgimento da música popular
nativa não é um feito circunstancial, mas uma tomada de consciência do povo
argentino.
No
que diz respeito a Buenos Aires, apontamos este fato: devido ao auge industrial
que se inicia radicalmente na Segunda Guerra Mundial, a capital o aporte
massivo de imensos contingentes humanos do interior do país. Eles traziam, junto
à esperança de uma vida melhor na grande cidade, suas velhas guitarras e a
magia de suas paisagens natais. Posteriormente, seria o mercado quem, cada vez
mais, exigiria música nativa e que acabaria por impor ao homem e à mulher
portenhos uma paixão inquietante por esse imenso e abissal país continente.
Todo o país começou a ver-se neste cancioneiro, suspeitando que, atrás de suas
costas, um mundo cativante e desconhecido havia sido posto em movimento.
O
auge da música folclórica é um sinal de maturidade que o argentino conquistou a
partir do conhecimento do país real. São os primeiros sintomas massivos de uma
atitude cultural diferente. O país existe. O povo do interior acabou por
realizar a terceira fundação de Buenos Aires, agora a partir de dentro. A
consciência deste “ser no país” é irreversível e suas implicações mais
profundas, das quais o cancioneiro nativo é só a forma mais visível, informarão
e conformarão no futuro o seu destino histórico. Porém, este descobrimento da
terra, esta valorização cultural nova que tentamos desentranhar, deve ser
ampliada e aprofundada, sob pena de que se perda no tráfego de interesses
criados e paralisantes. Se para muitos este fato é somente uma distração ou um
modo de ir mais além de suas aptidões imediatas, o artista criador com vocação
nacional e raiz popular deve burlar esta armadilha.
Que
não roubem nem do artista e nem de seu povo esta tomada de consciência é o que
propõe o NOVO CANCIONEIRO.
Raízes
do Novo Cancioneiro
Até
o advento de Buenaventura Luna e Atahualpa Yupanqui, o cancioneiro nativo se
manteve numa etapa de formas estritamente tradicionalistas e recompiladoras. Se
versava sobre o tema tal e qual havia sido achado: em sua versão primária com
poucos e esporádicos aportes criadores que, quase sem exceção, se esforçavam
por respeitar o cânon tradicional.
Deste
ciúme pelas formas originárias e puras, advirão logo os vícios que querem fazer
do cancioneiro popular nativo um solene cadáver.
Em
seu tempo, quando o principal era a difusão da canção nativa, este estilo e
este conceito teve uma inegável justificativa e este labor de tantos abnegados
curadores e difusores da canção vernácula merece de nós o mais alto respeito. E
então, o cancioneiro precisava de um lugar profundo e visível na sensibilidade
de amplos setores do país; era natural e lógica a insistência em mostrá-lo tal
e qual era ou havia sido sua origem. Mas foi a estagnação neste estágio que o
degenerou em um folclorismo de cartão postal, do qual ainda sofremos as
remanescências, sem vida nem vigência para o homem que construía e modificava
dia a dia sua realidade. É com Buenaventura Luna, no literário, e com Atahualpa
Yupanqui, no literário musical, que se inicia o impulso renovador que amplia
seu conteúdo sem ferir sua raiz autóctone. A este achado, se somará logo o
aporte de músicos, poetas e intérpretes das novas gerações que, clamando pelo
desmonte destes entraves acerca da sensibilidade popular, protagonizaram o
ressurgimento atual. Tanto Luna como Yupanqui surgem das suas regiões do país
mais ricas em expressões musicais: o Norte e o Cuyo. Estes, sem ser os únicos,
são os mais representativos percussores, pela qualidade e pela extensão de suas
obras e por sua vocação de expressar de modo renovado a canção popular nativa,
o que acaba por proporcionar a origem do NOVO CANCIONEIRO.
O
que é o Novo Cancioneiro?
O
NOVO CANCIONEIRO é um movimento literário-musical dentro do âmbito da música
popular argentina. Não nasce por ou como oposição a nenhuma manifestação
artística popular, mas como consequência do desenvolvimento estético e cultural
do povo e é sua intenção defender e aprofundar este desenvolvimento. Tentara
assimilar todas as formas modernas de expressão que ponderem e ampliem a música
popular e é seu propósito defender a plena liberdade de expressão e de criação
dos artistas argentinos. Aspira renovar, em forma e conteúdo, nossa música,
para adequá-la ao ser e ao sentir do país de hoje. O NOVO CANCIONEIRO não
desdenha das expressões tradicionais ou de fonte folclórica da música popular nativa,
pelo contrário, se inspira nelas e cria a partir de seu conteúdo, mas não para
furtar do tesouro do povo, senão para devolver a esse patrimônio o tributo
criador das novas gerações.
A
que se propõe o Novo Cancioneiro?
O
NOVO CANCIONEIRO se propõe a buscar a riqueza criadora dos autores e
intérpretes argentinos, à integração da música popular na diversidade das
expressões regionais do país.
Quer
aplicar a consciência nacional do povo, mediante novas e melhores obras que a
expressem. Busca e promove a participação da música típica popular e popular
nativa nas demais artes populares: o cinema, a dança, o teatro, etc., em uma
mesma inquietude criadora que contenha o povo, sua circunstância histórica e
sua paisagem. Neste sentido, adere à inquietude do Nuevo Cine, como também a
toda tentativa de renovação que tente testemunhar e expressar pela arte nossa
apaixonante realidade, sem concessões nem deformações.
Rechaça
todo regionalismo fechado e busca expressar o país todo na ampla gama de suas
formas musicais. Se propõe a depurar dos convencionalismos e tabus
tradicionalistas à exaustão, o patrimônio musical tanto de origem folclórica
quanto de origem popular.
Alentará
a necessidade de criar permanentemente formas e procedimentos interpretativos,
assim como obras de genuína identidade com o país de hoje que enriqueçam a
sensibilidade e a cultura de nosso povo.
Desfará,
rechaçará e denunciará ao publico, mediante análise esclarecedora em cada caso,
toda produção grosseira e subalterna que, com finalidade mercantil, tente
depreciar tanto a inteligência quanto a moral de nosso povo.
O
NOVO CANCIONEIRO acolhe em seus princípios a todos os artistas identificados
com seus desejos de valorizar, aprofundar, criar e desenvolver a arte popular e
neste sentido buscará a comunicação, o diálogo e o intercâmbio com todos os
artistas e movimentos similares do resto da América.
Apoiará
e estimulará o espírito crítico, a partir de círculos artísticos e organizações
culturais destinadas ao nosso acervo, para que o “culto pelo nosso” deixe de
ser uma mera distração e se canalize em uma compreensão séria e respeitosa de
nosso passado e de nosso presente, mediante o estudo e o diálogo formativo de
nossas juventudes.
O
NOVO CANCIONEIRO lutará para converter a presente adesão do povo argentino ao
seu canto nacional em um valor cultural inalienável.
Afirma
que a arte, como a vida, deve estar em permanente transformação e por isso
busca integrar o cancioneiro popular ao desenvolvimento criador do povo todo
para acompanha-lo em seu destino, expressando seus sonhos, suas alegrias, suas
lutas e suas esperanças.
TITO FRANCIA – OSCAR
MATUS – ARMANDO TEJADA GOMEZ – MERCEDES SOSA – VICTOR GABRIEL NIETO – MARTIN
OCHOA – DAVID CABALLERO – HORACIO TUSOLI – PERLA BARTA – CHANGO LEAL – GRACIELA
LUCERO – CLEDE VILLEGAS – EMILIO CROSETTI – ADUARDO ARAGÓN.
Disponível originalmente
em: http://www.tejadagomez.com.ar/adhesiones/manifiesto.html
Tradução: Yuri Ramos
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