segunda-feira, 10 de julho de 2017

Aos Atores Brasileiros, por Otto Maria Carpeaux




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Aos Atores Brasileiros



Será comemorado este ano o cinquentenário da morte de Henrik Ibsen. Como a participação do Brasil, sugeri a realização de um festival Ibsen, incluindo obrigatoriamente representações de Peer Gynt, Espectros, Inimigo do povo, Pato selvagem e Construtor Solness. Facultativas: Os pretendentes da coroa, Brand, A Aliança da Mocidade, Colunas da sociedade, Casa de bonecas, Rosmersholm, Hedda Gabler, Jonh Gabriel Borkman; e não seria de mais.

Sem dúvida, a ideia encontrará resistência. Um ator brasileiro, homem lido e culto, dizia-me, certa vez: “Não desprezo Ibsen; mas prefiro teatro do meu tempo”. É por isto mesmo que este artigo se destina especialmente aos atores brasileiros.

Afirma-se que os atores de hoje já não sabem dizer versos. Mas tenho, na verdade, dúvidas quanto à prosa. É possível que os atores não acertem o estilo da poesia moderna; mas esta não se destina a ser recitada em voz alta. Muito sabem, porém, nossos atores acertar a expressão retoricamente fortalecida dos sentimentos, assim como a representa o verso da tragédia clássica, shakespeariana e schilleriana. É muito mais difícil dizer prosa: não a prosa poética de certo grupo de peças modernas, mas prosa comum, isto é, ritmada conforme as leis da lógica. É este o caso de Ibsen. Seu estilo não serve à expressão de sentimentos; também é deliberadamente anti-retórico, imitando a linguagem da gente comum na vida de todos os dias. Sua língua é simples meio de comunicação entre pessoas que discutem. Mas essas discussões são os núcleos de suas peças. Toda a ação dramática só serve para chegar-se a essas grandes discussões teóricas. Não são cenas retóricas. Os atores não devem dizer assim como os advogados pleiteiam perante o tribunal; nem assim como os réus e acusadores que manifestam reações psicológicas. Tudo isso só enfraqueceria a força da lógica ibseniana. Aquelas discussões antes se parecem com “cross-examinations”, interrogatórios dialéticos através dos quais se revelam as contradições intrínsecas das teses propostas para solucionar problemas: os famosos “problemas de Ibsen”.

Eis a raiz da resistência. Nora já não tem o direito para reivindicar no palco os direitos da mulher, porque a mulher do nosso tempo já tem todos os direitos. Os chamados problemas de Ibsen seriam preocupações da “pequena-burguesia” e dos intelectuais burgueses do fim do século XIX. Seriam problemas obsoletos. As nossas preocupações teatrais de hoje já não cabem na estreiteza do teatro realista: são extra-sociais, supratemporais, universais e, por isso, poéticos. 

É verdade que até hoje aventureiros fundam alianças da mocidade para conquistar mandatos parlamentares; que os métodos parlamentares; que os métodos comerciais do cônsul Bernick ainda são os mesmos de muitos cônsules e não-cônsules; que o doutor Stockmann, se revelasse a verdade sobre a conjugação de interesses econômicos e forças políticas, já não seria simplesmente declarado inimigo do povo; destino muito mais sério o esperaria. Mas o fato de que certos problemas de Ibsen ainda não foram solucionados é resposta fraca. Porque superficial, àquela resistência. Certos problemas de Ibsen não podiam envelhecer, porque nunca existiam dentro das suas peças. Ainda voltaremos ao caso de Nora. E “Espectros” não gira em torno de Oswald e de sua doença mal diagnosticada, mas é a tragédia de Helene Alvina. Que não teve a coragem de tirar as conclusões do fracasso de seu próprio casamento. Mas não é desta maneira que se deveria demonstrar a “atualidade” de Ibsen. Atuais não são os seus temas, e sim suas atitudes. A “filosofia” de Ibsen só pode ser bem compreendida dentro do movimento filosófico que se decompôs o hegelianismo historicista. Ibsen está no meio entre o anti-romântico Goethe e o “futurista” Nietzsche, dois inimigos declarados da História. Como eles, o dramaturgo foi anti-passadista. Em suas peças são frequentes antíteses como “os velhos e os novos”, “coisas murchas e coisas novas”: metáforas como “espectros que querem voltar” e “estamos num navio que tem um cadáver a bordo”. Só em suas últimas obras parece determinista e fatalista, temendo a vitória dos mortos e das velhas convenções. Mas seu pessimismo não denuncia a ordem falha do Universo, Continua acusando falsas leis humanas modificáveis. Apenas chegara a reconhecer o poder da história, daquela que é negada no drama poético, “supra-temporal”, de hoje. Mas não adianta negá-la. Ibsen é mais atual que seus adversários.

Só se lhe rejeitariam, como obsoletas, as “teses”. Nora não tem, realmente, o direito de reivindicar mais do que já obteve, sob pena de transformar-se em uma daquelas mulheres-dominadoras que Strindberg denuncia; depois, aliás, que Ibsen já as denunciara em “Hedda Gabler”. Não há, porém, entre Hedda Gabler e Casa de bonecas nenhuma contradição. Pois o tema de Casa de bonecas não é o feminismo; o enredo não pretende demonstrar “teses”, mas expor certos personagens à prova por certos acontecimentos. Só para isso serve o enredo. Só para isso serve o ambiente, essas pequenas cidades nórdicas e estreitas casas burguesas que são outro motivo de reação anti-ibseniana. O diretor de cena saberá “atualizá-las”. E não são tão estreitas assim; pois cada vez quando no palco se abre uma porta para deixar entrar outro personagem, acreditamos sentir o ar fresco e salgado do mar lá fora, do oceano que é o mesmo naquelas e nestas paragens.

Estreito também parece o palco de Ibsen, porque está tão densamente povoado. Há grupos compactos, ligados pelo amor e pelo ódio, como o grupo de Rolmersholm: Rosmer, o intelectual hamletiano; Rebeka, má e inteligente; Kroll, o conservador interessado; Mortensgard, o radical menos fidedigno; e Brendel, o idealista que acabara na sarjeta. Há os “duos”: Nora e Helmer, Helene Alving e o tímido pastor Manders. Enfim, há os isolados: Solness, envelhecendo e ainda ambicioso; Hedda Gabler, a histérica pseudo-poética; Hjalmar Ekdal, o fracassado que posa perante si próprio, o “caráter” mais original de todo o teatro pós-shakespeariano; o Dr. Stockmann, Alceste e Timon ao mesmo tempo, mas personagem cômico, porque é otimista; Bernick, menos rico que inescrupuloso; o advogado Stensgard, fundador da Aliança da Mocidade; Brand, o homem da vontade de ferro, e Jarl Skule, sem vontade porque cético; e há aquele resumo de tudo o que é nobre e baixo na natureza humana: Peer Gynt; e os inúmeros comparsas que os rodeiam, uma assembleia de espectros que pedem sangue para voltar à vida como as sombras dos defuntos pediram a Ulisses. Gritam por serem representados... Façamos o Festival Ibsen. Os atores terão de agradecer, muitas vezes, às palmas da plateia. Gratos também serão os diretores, os cenógrafos. Grato também ficará o homem na bilheteria.





(Otto Maria Carpeaux, Revista de Teatro SBAT nº 291)

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