quarta-feira, 28 de março de 2018

O limite entre a ação e a aventura - O kung fu melodramático de Chor Yuen


            






            Quando, em 1971, Chor Yuen passou a fazer parte do staff da Shaw Brothers, já havia feito dezenas de filmes e era um diretor relativamente conhecido. Se ainda não era um artista completamente maduro, vários, entre os principais elementos estéticos que autoralmente o caracterizaram, já estavam presentes e bem desenvolvidos em sua obra. Sua estreia nas fileiras da Shaw é, no entanto, um marco significativo para sua carreira, transferindo seus anseios artísticos para um ambiente estranho, o dos filmes de artes marciais. Até ali, Chor Yuen era um especialista em melodramas (e, talvez, nunca tenha deixado de sê-lo acima de tudo); havia feito um grande filme, mais de uma década antes, The Great Devotion, que evidenciava, desde já, sua obsessão maior, pelo tema do destino, muitas vezes pela tragédia, e pelas estruturas narrativas permeadas das reviravoltas típicas do enredo melodramático.  A inserção de Yuen no cinema de kung fu torna-se, assim, muito atípica: um cineasta cuja principal obsessão reside no estudo da lógica narrativa, na análise da estrutura e da concatenação de fatos, é, em algum aspecto, o oposto de um diretor de ação. Isto porque o filme de ação é, por excelência, aquele em que toda a narrativa se submete à apreciação estética de determinados atos por suas ações “em si”, pela aparência virtuosística delas, à apreciação da física, da mecânica dos atos enquanto atos virtuosísticos. O filme dito “de ação” jamais a submete à narrativa, procurando a apreciação do ato por seu significado no contexto do enredo. E Chor Yuen, no seu ímpeto melodramático, seria, certamente, um cineasta problemático para cumprir tais exigências: se o estudo de Yuen é sobre a lógica da concatenação das ações, sua análise não reside no estudo do movimento físico de tais atos, mas no estudo do movimento entre os atos, do movimento que leva de uma ação à outra.

            É nesta seara espinhosa que o cineasta estreia seu Duel For Gold. O filme se inicia com um morto ensanguentado próximo a um pote com vários lingotes de ouro. O narrador nos avisa: não se trata de um filme onde queiramos descobrir se alguém morrerá ou não, porque a história desde já nos mostra que todos pereceram. O que importa é saber como chegaram ali e porque o ouro os levou a esta desgraça. Com este prólogo, a primeira parceria Shaw-Yuen já se delineia muito bem como continuidade da tradição melodramática do diretor. Há o aviso: não é muito adequado se preocupar com as mortes ou, mais propriamente, com os assassinatos (as ações de matar), mas em como traçará a teia de ações que culmina na tragédia. Este âmbito novo para o cineasta lhe traz, no entanto, dados inéditos, porque as premissas narrativas de um filme de artes marciais é bem diferente das de um melodrama. Aqui, o espaço para intrigas, para a vingança e para a traição, são muito maiores, porque são muito mais eivados da influência do homem que de uma mera intervenção inesperada do destino (como ocorre, majoritariamente, no melodrama).  Deste modo, é com Duel For Gold que, mesmo timidamente, Yuen vai tornando seus esquemas narrativos mais complexos, no ensaio da estrutura notadamente labiríntica que muitas de suas obras posteriores viriam a ter. Neste sentido, o tema da farsa e da traição tornam-se habituais na composição dos roteiros para compor reviravoltas das mais variadas, em enredos que, nesta perseguição pela análise da concatenação dos atos, se tornam paradoxais: nas histórias de Yuen, é tudo, ao mesmo tempo, hermeticamente fechado e assustadoramente aberto. Hermeticamente fechado porque seus labirintos de ações, no fundo, estão sempre conduzindo a um fim inevitável e, neste sentido, constituem uma espécie de adereço intrincado para a tragédia; assustadoramente aberto porque suas reviravoltas dependem, antes de tudo, do livre querer de seus personagens: as traições, tão caras ao diretor, nunca fazem parte, nos seus enredos, de uma lógica própria das intrigas, mas de ímpetos inesperados de egoísmo por parte de certos personagens, enquanto outros, mesmo os também antagonistas, acabam indecisos entre a confiança e a desconfiança nos traidores. É principalmente esta constante incorrência do tema, na obra de Yuen na Shaw Brothers, aliada ao polo de tensão entre confiança e desconfiança, que caracteriza o caráter aberto de suas narrativas labirínticas. A este ponto se alia uma temática secundária, mas significativa, que é a do transformismo: inesquecível é a relevância deste aspecto para as reviravoltas de Clans of Intrigue (1977), por exemplo.

            Todo este desmonte da estrutura melodramática yueniana pré-Shaw e sua subsequente reconstrução e modificação no âmbito do cinema de kung fu afetarão terminantemente a forme de Yuen conceber suas cenas de confronto corpo-a-corpo e, por conseguinte, a sua estética como um cineasta de ação tão atípico. É interessante ressaltar que, a despeito do fato de seus filmes terem sido tão populares quanto os de Chang Cheh, Lau Kar-Leung ou King Hu, a sua retratação da ação é muito diversa destes e, poderíamos dizer, muito mais comedida. A decupagem não se pauta numa participação ativa no itinerário da ação, fazendo o público, de certa maneira, ser partícipe no processo virtuosístico perpetrado pelos atores (como em Chang Cheh). Também não se pauta exatamente na relação intrínseca entre o espaço e o virtuosismo coreografado a modas pitorescas, como faz King Hu em alguns casos. Em todos estes há um anseio muito presente pela apreciação do vistuosístico, quando em Chor Yuen há uma câmera praticamente imparcial, a filmar as ações, antes de tudo, como fatos, que importam, em alguma instância, em sua física e em sua mecânica, mas que, antes de tudo, importam como sinais de causas e consequências que se encadeiam no enredo. Seu virtuosismo, por assim dizer, é do invisível, do movimento invisível que conduz de ação para ação.

          Mas, mesmo com tudo isso, continua Chor Yuen sendo um diretor de ação? É certo que sim. Porque se o seu “movimento invisível” é o cerne de sua obra, a apreciação desta concatenação é intrinsecamente dependente de certa apreciação daquilo que se concatena. E este “concatenado” também abrange as batalhas, as cenas de ação, que, embora estejam subordinadas a este movimento primevo que caracteriza a estética yueniana, ainda são objetos virtuosísticos apreciáveis por si próprios.

É curioso que, se o cinema de ação é o da apreciação da mecânica dos atos, provavelmente o de aventura é aquele que trata mais estritamente do emaranhado das ações. No fundo, Chor Yuen é um pouco das duas coisas, tendendo mais à primeira. É o kung fu e o melodrama, o limite entre a ação e a aventura.      


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