Quando, em 1971, Chor
Yuen passou a fazer parte do staff da Shaw Brothers, já havia feito dezenas de
filmes e era um diretor relativamente conhecido. Se ainda não era um artista completamente
maduro, vários, entre os principais elementos estéticos que autoralmente o
caracterizaram, já estavam presentes e bem desenvolvidos em sua obra. Sua
estreia nas fileiras da Shaw é, no entanto, um marco significativo para sua
carreira, transferindo seus anseios artísticos para um ambiente estranho, o dos
filmes de artes marciais. Até ali, Chor Yuen era um especialista em melodramas
(e, talvez, nunca tenha deixado de sê-lo acima de tudo); havia feito um grande
filme, mais de uma década antes, The Great Devotion, que evidenciava, desde já,
sua obsessão maior, pelo tema do destino, muitas vezes pela tragédia, e pelas
estruturas narrativas permeadas das reviravoltas típicas do enredo
melodramático. A inserção de Yuen no
cinema de kung fu torna-se, assim, muito atípica: um cineasta cuja principal
obsessão reside no estudo da lógica narrativa, na análise da estrutura e da
concatenação de fatos, é, em algum aspecto, o oposto de um diretor de ação.
Isto porque o filme de ação é, por excelência, aquele em que toda a narrativa
se submete à apreciação estética de determinados atos por suas ações “em si”,
pela aparência virtuosística delas, à apreciação da física, da mecânica dos
atos enquanto atos virtuosísticos. O filme dito “de ação” jamais a submete à narrativa,
procurando a apreciação do ato por seu significado no contexto do enredo. E
Chor Yuen, no seu ímpeto melodramático, seria, certamente, um cineasta
problemático para cumprir tais exigências: se o estudo de Yuen é sobre a lógica
da concatenação das ações, sua análise não reside no estudo do movimento físico
de tais atos, mas no estudo do movimento entre os atos, do movimento que leva
de uma ação à outra.
É nesta seara espinhosa que o cineasta estreia seu Duel
For Gold. O filme se inicia com um morto ensanguentado próximo a um pote com
vários lingotes de ouro. O narrador nos avisa: não se trata de um filme onde
queiramos descobrir se alguém morrerá ou não, porque a história desde já nos
mostra que todos pereceram. O que importa é saber como chegaram ali e porque o
ouro os levou a esta desgraça. Com este prólogo, a primeira parceria Shaw-Yuen
já se delineia muito bem como continuidade da tradição melodramática do
diretor. Há o aviso: não é muito adequado se preocupar com as mortes ou, mais
propriamente, com os assassinatos (as ações de matar), mas em como traçará a
teia de ações que culmina na tragédia. Este âmbito novo para o cineasta lhe traz,
no entanto, dados inéditos, porque as premissas narrativas de um filme de artes
marciais é bem diferente das de um melodrama. Aqui, o espaço para intrigas,
para a vingança e para a traição, são muito maiores, porque são muito mais
eivados da influência do homem que de uma mera intervenção inesperada do
destino (como ocorre, majoritariamente, no melodrama). Deste modo, é com Duel For Gold que, mesmo
timidamente, Yuen vai tornando seus esquemas narrativos mais complexos, no
ensaio da estrutura notadamente labiríntica que muitas de suas obras
posteriores viriam a ter. Neste sentido, o tema da farsa e da traição tornam-se
habituais na composição dos roteiros para compor reviravoltas das mais
variadas, em enredos que, nesta perseguição pela análise da concatenação dos
atos, se tornam paradoxais: nas histórias de Yuen, é tudo, ao mesmo tempo,
hermeticamente fechado e assustadoramente aberto. Hermeticamente fechado porque
seus labirintos de ações, no fundo, estão sempre conduzindo a um fim inevitável
e, neste sentido, constituem uma espécie de adereço intrincado para a tragédia;
assustadoramente aberto porque suas reviravoltas dependem, antes de tudo, do
livre querer de seus personagens: as traições, tão caras ao diretor, nunca
fazem parte, nos seus enredos, de uma lógica própria das intrigas, mas de
ímpetos inesperados de egoísmo por parte de certos personagens, enquanto outros,
mesmo os também antagonistas, acabam indecisos entre a confiança e a
desconfiança nos traidores. É principalmente esta constante incorrência do
tema, na obra de Yuen na Shaw Brothers, aliada ao polo de tensão entre
confiança e desconfiança, que caracteriza o caráter aberto de suas narrativas
labirínticas. A este ponto se alia uma temática secundária, mas significativa,
que é a do transformismo: inesquecível é a relevância deste aspecto para as
reviravoltas de Clans of Intrigue (1977), por exemplo.
Todo este desmonte da estrutura melodramática yueniana
pré-Shaw e sua subsequente reconstrução e modificação no âmbito do cinema de
kung fu afetarão terminantemente a forme de Yuen conceber suas cenas de
confronto corpo-a-corpo e, por conseguinte, a sua estética como um cineasta de
ação tão atípico. É interessante ressaltar que, a despeito do fato de seus
filmes terem sido tão populares quanto os de Chang Cheh, Lau Kar-Leung ou King
Hu, a sua retratação da ação é muito diversa destes e, poderíamos dizer, muito
mais comedida. A decupagem não se pauta numa participação ativa no itinerário
da ação, fazendo o público, de certa maneira, ser partícipe no processo
virtuosístico perpetrado pelos atores (como em Chang Cheh). Também
não se pauta exatamente na relação intrínseca entre o espaço e o virtuosismo
coreografado a modas pitorescas, como faz King Hu em alguns casos. Em todos
estes há um anseio muito presente pela apreciação do vistuosístico, quando em
Chor Yuen há uma câmera praticamente imparcial, a filmar as ações, antes de
tudo, como fatos, que importam, em alguma instância, em sua física e em sua
mecânica, mas que, antes de tudo, importam como sinais de causas e
consequências que se encadeiam no enredo. Seu virtuosismo, por assim dizer, é
do invisível, do movimento invisível que conduz de ação para ação.
Mas, mesmo com tudo isso, continua Chor Yuen sendo um
diretor de ação? É certo que sim. Porque se o seu “movimento invisível” é o
cerne de sua obra, a apreciação desta concatenação é intrinsecamente dependente
de certa apreciação daquilo que se concatena. E este “concatenado” também
abrange as batalhas, as cenas de ação, que, embora estejam subordinadas a este
movimento primevo que caracteriza a estética yueniana, ainda são objetos
virtuosísticos apreciáveis por si próprios.
É
curioso que, se o cinema de ação é o da apreciação da mecânica dos atos,
provavelmente o de aventura é aquele que trata mais estritamente do emaranhado
das ações. No fundo, Chor Yuen é um pouco das duas coisas, tendendo mais à primeira.
É o kung fu e o melodrama, o limite entre a ação e a aventura.
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