A relação entre o cinema
de fantasia e a obra de James Cameron é, antes de qualquer abordagem mais
intrínseca aos seus filmes, genética: é na continuação de um filme de Joe Dante
que o cineasta fará a estreia na direção de longas-metragens; os efeitos especiais fazem parte integrante do início de sua carreira; por fim, é em contato com Roger Corman que firma uma de suas primeiras e decisivas impressões sobre o cinema fantástico, em Mercenários das Galáxias.
No entanto, se há algo de hereditário que norteou, desde
os primórdios de sua carreira, a veia fantásticas das narrativas de Cameron, é
justo que também se tente discernir qual a relação própria entre o real e o
fantástico disposta dentro de suas obras em particular.
Neste sentido, é muito curioso que a sua carreira pareça se dividir em duas fases: a primeira é aquela na qual o caráter
fantástico da narrativa só é verificado de modo consciente num ambiente exógeno
à obra, na relação extrínseca que o filme estabelece com o espectador, onde
este último o reconhece conscientemente como um exemplar de narrativa
fantástica, consequentemente discernindo-o (não só por isso, mas também por
isso) como um objeto admirável, um objeto que suscita interesse. E no que tange
a este reconhecimento, ele se dá especificamente no momento em que certos
elementos surgem nas obras, conferindo-lhes, a partir deste ponto, um tom de
périplo, de “jornada fantástica”. Este surgimento, por sua vez, se dá de duas
formas: quando algum elemento fantástico é inserido na ordinaridade do mundo (o
Exterminador do Futuro que vem ao mundo atual; as piranhas que surgem na praia)
ou quando personagens de um mundo ordinário resolvem se inserir num ambiente
fantástico (The Abyss e Alien).
A segunda fase de Cameron, ao contrário, apesar de conter
a mesma verificação consciente, por parte do espectador, do filme enquanto
jornada fantástica, carrega também este reconhecimento intrínseco na obra, por
parte de alguns de seus personagens (geralmente os protagonistas e os
coadjuvantes de maior relevância). Esta autoconsciência da narrativa fantástica
é bastante clara em True Lies, Titanic e Avatar, os três últimos filmes de
Cameron. No primeiro, um membro da CIA, cuja mulher acredita ser adúltero por
passar muito tempo fora de casa supostamente trabalhando, resolve, para provar
sua inocência, dar uma amostra, para a esposa, do que é o seu quotidiano de
agente secreto. No terceiro, um paralítico encontra refúgio de um ambiente degradado e excludente num mundo dos sonhos, que ele avidamente deseja, onde
seu corpo é substituído por um duplo, seu “avatar”. Em ambos os casos, é
evidente a autoconsciência da obra em seu caráter fantástico e, ao mesmo tempo,
a consciência dos personagens no adentramento de um mundo que não é
propriamente o real.
O segundo filme, no entanto, Titanic, é um caso curioso,
que, ao se encaixar de modo singular nesta segunda categoria de consciência da
fantasia, parece cumprir ainda melhor os objetivos da estética da primeira fase
de Cameron que aqui delimitamos. Se aquela fase era a de uma consciência, por parte
do espectador, da fantasia, com a consequente admiração em relação àquilo que é
visto, em Titanic o desejo não é só da admiração da ação fantástica, mas de
sermos nós mesmos os atores dela. A autoconsciência de Rose de estrar
adentrando, durante seu enorme flashback, num mundo do passado, no ambiente da
memória, e ao mesmo tempo, o convite que ela faz aos coadjuvantes que a ouvem
contar o ocorrido, com um sugestivo “vocês estão prontos para ouvir isso?”,
constituem um método de condução do espectador a participar de sua jornada por meio de detalhes formais bastante pontuais na obra
(a câmera subjetiva na sequência final, onde Rose somos nós e nós somos ela, em
sua última viagem pelo “navio dos sonhos”).
É muito provavelmente por isso que se pode dizer que
Titanic é o filme mais maduro de Cameron, aquele em que seus recursos formais
de comunicação estética/narrativa em prol da imersão nas suas alegorias
fantásticas sãos mais bem desenvolvidos e chegam a níveis de eficiência muito
maiores. E, neste sentido, é muito instigante esperar pelo que vem por aí com
os novos Avatares, que parecem ensaiar um rompimento com todos estes processos
que aqui citamos.
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