sábado, 11 de maio de 2019

Feng Yueh e os Pintores da Tragédia, por Yuri Ramos




          Resultado de imagem para feng yueh



           Feng Yueh foi um homem de sucessos. Desde a década de 1930, emplacou estouros de bilheteria, com alguns clássicos relativamente lembrados até os dias de hoje pelos chineses. Foi o principal diretor da carreira de Linda Lin Dai, a suicida que conquistou o coração de toda Hong Kong e que, ainda hoje, é uma das atrizes mais afamadas do cinema chinês. Conseguiu a proeza de com mais de 70 anos de idade continuar a filmar numa produtora de tino comercial imenso como a Shaw Brothers, numa época em que isto era raro. Terminou sua carreira com mais dezenas de filmes do que as dezenas e dezenas de anos em que lutou nas fileiras deste campo de batalha arisco que é o do cinema.

            Hoje, Feng Yueh é um nome mais do que esquecido. Seus filmes estão aí para todos verem, mas a autoria por trás das películas parece ignorada por muito, quase todos. O Hong Kong Film Archive, que vem realizando inclusive bom trabalho de resgate dos cineastas de seu país (produziram um livro inteiro sobre Zhu Shilin), somente lhe dedica uma mísera página em seu catálogo de diretores. Isto se deve, em grande parte, é claro, ao fato de que os poucos críticos dedicados mais seriamente ao legado dos irmãos Shaw, hoje em dia, se resumem mormente a proclamar como “autores” do cinema de kung fu a King Hu, Chang Cheh, Lau Kar-Leung e, quando muito, a Chor Yuen, muito impulsionados pela reverberação que estes cineastas tiveram na Europa em certos círculos, entre as décadas de 1970 e 1980. Por causa de Pierre Rissient, alguns também descobriram o terreno da ópera huangmei e vangloriam Han-Hsiang Li, mas estes casos são raros.

            Perdem muito ao não conhecerem um gênio (e profundamente autoral), um dos maiores gênios de Hong Kong. Yueh impôs um estilo único, derivado em grande parte da pintura, que lhe fez tecer suas imagens sempre de forma trágica, mas ao mesmo tempo bastante tênue, equilibrada, mas cheia de esplendor. Não era parente da pintura chinesa, como o era Han-Hsiang Li (e mesmo King Hu, se se perceber com cuidado), que em suas coreografias emigradas da ópera huangmei valorizavam os cenários fixos, os gestos lânguidos, a imagem eternizada na bidimensionalidade, que preconiza mais significados dos símbolos estáticos do que o que é dito de forma mais evidente nas ações. E isto tudo apesar de ter sido um dos grandes diretores dos filmes de ópera. Neste sentido pitoresco, estava muito mais aliado à pintura ocidental barroca ou clássica. Em quase todos os seus filmes de artes marciais, mas também em seus melodramas coloridos (e isto se deve, em partes, ao trabalho de fotógrafo de Pao Hshueh-Li), há um enorme contraste entre luz e sombra: a presença constante de planos da câmera contra o sol, mas, ao mesmo tempo, a insistência em cenários escuros, num tom marrom predominante, e na valorização dos sombreados em cada cena. Esta característica fotográfica redunda também em questões morais que permeiam seus enredos: estes mundos claros-escuros são universos sem paz, profundamente tensionados pela iminência da tragédia, como se a sombra do destino fosse sempre aquela que encobrisse a vida dos homens. E é claro, como bom trágico, tensiona também seus personagens entre vida e morte (que, muitas vezes, significa o sacrifício redentor).

            Em seus filmes de ópera, igualmente valorizou a volubilidade narrativa do melodrama no cuidado com as imagens: sem a bidimensionalidade de Han-Hsiang e seus cenários semi-teatrais, bastante imutáveis e, em algum sentido, estáveis, Yueh empregava um décor mais realista, onde, para além da preocupação com o número musical cantado, a cenografia aparentasse o ambiente do personagem tão variável quanto o quotidiano, sem que fosse necessário, para a execução de uma ária ou de outro número, a onipresente estrutura fixa dos tradicionais cenários do cinema huangmei. Isto viria, em sua proposital “instabilidade”, ao encontro das idas e vindas amorosas tão típicas destas histórias tradicionais de melodrama.

            Também “como pintor”, Yueh foi um mestre dos símbolos. Suas imagens eram sempre carregadas de profundas rememorações e enormes significados; as frases de seus roteiros (também foi roteirista afamado) tinham algo de mistérico, de inefável, como naquele inesquecível final de The Bells of Death, em que os sobreviventes de um massacre dizem que retornarão para casa, mesmo vendo que estão a caminho de um casebre totalmente destruído. Para retratar o confronto do homem com seu fado, utilizou-se de arquétipos dos elementos naturais, que ajudam a discernir a força do heroísmo: o fogo, na redenção final de The Last Woman of Shang; o dilúvio movido por uma mulher em prol de seu amor, em Madame White Snake. Yueh caminhou, assim, numa espécie de “realismo fantástico”, onde os sentimentos reais de seus personagens, ao serem cada vez mais presentificados na tela por alegorias, símbolos, metáforas e outras figuras, tornassem a realidade cada vez mais fantasiosa. É como se o abstrato, reificado e presentificado no simbólico, tornasse concreta a fantasia.

            Seu ofício de trágico foi muito parecido com o de Chang Cheh (com quem compartilhou boa parte de sua equipe técnica): os temas do heroísmo e também da amizade lhe aprouveram, mas, diferentemente de seu conterrâneo, o universo feminino lhe foi mais presente que o masculino, tendo sido um grande eternizados de heroínas e personagens célebres, sendo Hua Mulan, a general travestida de homem, provavelmente a mais famosa. Também como Cheh, tinha certa obsessão imagética pelo sangue, mas de modo diferente. Não era este fluido, para ele, um mero material pictórico, uma espécie de tinta a tecer imagens na tela. Era antes uma mácula, um signo forte daquilo que representava a morte, a ser mostrado com abundância, bem destacado, mas principalmente em contraste com os corpos, para mostrá-los assinalados daquela marca.  Algo macabramente decorativo.

            Curiosamente, no fim da vida, já em seus filmes do fim dos anos 1960 e ainda nos anos 1970, sua vocação para as imagens clássicas começou a aparentar certo geometrismo, principalmente na direção de ação. As lutas travadas organizavam grandes blocos em polígonos relativamente regulares e coreografias bastante organizadas, como no fim de Village of Tigers. Havia também a preferência pelo martírio de personagens por um esfaqueamento abundante, em que as adagas e lanças presas ao corpo do seviciado aparentavam um grande conjunto de retas diagonais que sempre se encontravam sobre a mesma matéria torturada, a partir do movimento repetido dos algozes.

            Tudo isto demonstra um fôlego inovador e impressionante, principalmente para um cineasta cuja estima é quase nula nos dias atuais. É prova de que nossa cinefilia ainda vive sob os grilhões dos incensos à crítica consagrada (estes que, é uma pena, não têm muita culpa do culto que lhes prestam) e de que o cinema asiático ainda tem muito o que nos revelar.

Neste ano, cumprem-se as duas décadas exatas da morte de Feng Yueh. Esperemos que, daqui a mais duas, sua memória tenha a relevância que merece.





Nenhum comentário:

Postar um comentário