Feng Yueh foi um homem de sucessos. Desde a década de
1930, emplacou estouros de bilheteria, com alguns clássicos relativamente
lembrados até os dias de hoje pelos chineses. Foi o principal diretor da
carreira de Linda Lin Dai, a suicida que conquistou o coração de toda Hong Kong
e que, ainda hoje, é uma das atrizes mais afamadas do cinema chinês. Conseguiu
a proeza de com mais de 70 anos de idade continuar a filmar numa produtora de
tino comercial imenso como a Shaw Brothers, numa época em que isto era raro.
Terminou sua carreira com mais dezenas de filmes do que as dezenas e dezenas de
anos em que lutou nas fileiras deste campo de batalha arisco que é o do cinema.
Hoje, Feng Yueh é um nome mais do que esquecido. Seus
filmes estão aí para todos verem, mas a autoria por trás das películas parece
ignorada por muito, quase todos. O Hong Kong Film Archive, que vem realizando
inclusive bom trabalho de resgate dos cineastas de seu país (produziram um
livro inteiro sobre Zhu Shilin), somente lhe dedica uma mísera página em seu
catálogo de diretores. Isto se deve, em grande parte, é claro, ao fato de que
os poucos críticos dedicados mais seriamente ao legado dos irmãos Shaw, hoje em
dia, se resumem mormente a proclamar como “autores” do cinema de kung fu a King
Hu, Chang Cheh, Lau Kar-Leung e, quando muito, a Chor Yuen, muito impulsionados
pela reverberação que estes cineastas tiveram na Europa em certos círculos,
entre as décadas de 1970 e 1980. Por causa de Pierre Rissient, alguns também
descobriram o terreno da ópera huangmei e vangloriam Han-Hsiang Li, mas estes
casos são raros.
Perdem muito ao não conhecerem um gênio (e profundamente
autoral), um dos maiores gênios de Hong Kong. Yueh impôs um estilo único,
derivado em grande parte da pintura, que lhe fez tecer suas imagens sempre de
forma trágica, mas ao mesmo tempo bastante tênue, equilibrada, mas cheia de
esplendor. Não era parente da pintura chinesa, como o era Han-Hsiang Li (e
mesmo King Hu, se se perceber com cuidado), que em suas coreografias emigradas
da ópera huangmei valorizavam os cenários fixos, os gestos lânguidos, a imagem
eternizada na bidimensionalidade, que preconiza mais significados dos símbolos
estáticos do que o que é dito de forma mais evidente nas ações. E isto tudo
apesar de ter sido um dos grandes diretores dos filmes de ópera. Neste sentido
pitoresco, estava muito mais aliado à pintura ocidental barroca ou clássica. Em
quase todos os seus filmes de artes marciais, mas também em seus melodramas
coloridos (e isto se deve, em partes, ao trabalho de fotógrafo de Pao
Hshueh-Li), há um enorme contraste entre luz e sombra: a presença constante de
planos da câmera contra o sol, mas, ao mesmo tempo, a insistência em cenários
escuros, num tom marrom predominante, e na valorização dos sombreados em cada
cena. Esta característica fotográfica redunda também em questões morais que
permeiam seus enredos: estes mundos claros-escuros são universos sem paz,
profundamente tensionados pela iminência da tragédia, como se a sombra do
destino fosse sempre aquela que encobrisse a vida dos homens. E é claro, como
bom trágico, tensiona também seus personagens entre vida e morte (que, muitas
vezes, significa o sacrifício redentor).
Em seus filmes de ópera, igualmente valorizou a
volubilidade narrativa do melodrama no cuidado com as imagens: sem a
bidimensionalidade de Han-Hsiang e seus cenários semi-teatrais, bastante
imutáveis e, em algum sentido, estáveis, Yueh empregava um décor mais realista,
onde, para além da preocupação com o número musical cantado, a cenografia aparentasse
o ambiente do personagem tão variável quanto o quotidiano, sem que fosse
necessário, para a execução de uma ária ou de outro número, a onipresente
estrutura fixa dos tradicionais cenários do cinema huangmei. Isto viria, em sua
proposital “instabilidade”, ao encontro das idas e vindas amorosas tão típicas
destas histórias tradicionais de melodrama.
Também “como pintor”, Yueh foi um mestre dos símbolos.
Suas imagens eram sempre carregadas de profundas rememorações e enormes
significados; as frases de seus roteiros (também foi roteirista afamado) tinham
algo de mistérico, de inefável, como naquele inesquecível final de The Bells of
Death, em que os sobreviventes de um massacre dizem que retornarão para casa,
mesmo vendo que estão a caminho de um casebre totalmente destruído. Para
retratar o confronto do homem com seu fado, utilizou-se de arquétipos dos
elementos naturais, que ajudam a discernir a força do heroísmo: o fogo, na
redenção final de The Last Woman of Shang; o dilúvio movido por uma mulher em
prol de seu amor, em Madame White Snake. Yueh caminhou, assim, numa espécie de
“realismo fantástico”, onde os sentimentos reais de seus personagens, ao serem
cada vez mais presentificados na tela por alegorias, símbolos, metáforas e
outras figuras, tornassem a realidade cada vez mais fantasiosa. É como se o
abstrato, reificado e presentificado no simbólico, tornasse concreta a fantasia.
Seu ofício de trágico foi muito parecido com o de Chang
Cheh (com quem compartilhou boa parte de sua equipe técnica): os temas do
heroísmo e também da amizade lhe aprouveram, mas, diferentemente de seu
conterrâneo, o universo feminino lhe foi mais presente que o masculino, tendo
sido um grande eternizados de heroínas e personagens célebres, sendo Hua Mulan,
a general travestida de homem, provavelmente a mais famosa. Também como Cheh,
tinha certa obsessão imagética pelo sangue, mas de modo diferente. Não era este
fluido, para ele, um mero material pictórico, uma espécie de tinta a tecer
imagens na tela. Era antes uma mácula, um signo forte daquilo que representava
a morte, a ser mostrado com abundância, bem destacado, mas principalmente em
contraste com os corpos, para mostrá-los assinalados daquela marca. Algo macabramente decorativo.
Curiosamente, no fim da vida, já em seus filmes do fim
dos anos 1960 e ainda nos anos 1970, sua vocação para as imagens clássicas
começou a aparentar certo geometrismo, principalmente na direção de ação. As
lutas travadas organizavam grandes blocos em polígonos relativamente regulares
e coreografias bastante organizadas, como no fim de Village of Tigers. Havia
também a preferência pelo martírio de personagens por um esfaqueamento
abundante, em que as adagas e lanças presas ao corpo do seviciado aparentavam
um grande conjunto de retas diagonais que sempre se encontravam sobre a mesma
matéria torturada, a partir do movimento repetido dos algozes.
Tudo isto demonstra um fôlego inovador e impressionante,
principalmente para um cineasta cuja estima é quase nula nos dias atuais. É
prova de que nossa cinefilia ainda vive sob os grilhões dos incensos à crítica
consagrada (estes que, é uma pena, não têm muita culpa do culto que lhes
prestam) e de que o cinema asiático ainda tem muito o que nos revelar.
Neste
ano, cumprem-se as duas décadas exatas da morte de Feng Yueh. Esperemos que,
daqui a mais duas, sua memória tenha a relevância que merece.
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