RUN RUN SHAW IMPERADOR DO CINEMA DE
HONG-KONG:
os
filmes que produzo são fábulas para adultos e eu sou arquimilionário
Entrevista de Oriana Fallaci
Sou
o primeiro a ficar espantado com aquilo que está a suceder com os meus filmes.
Nunca imaginara semelhante coisa. Sempre pensei que os filmes chineses não se
adaptassem ao gosto ocidental e convém não esquecer que há já oito anos que
produzo esses filmes. Durante oito anos
parecia que ninguém se apercebera deles fora do Sudeste Asiático. Depois, no
passado mês de fevereiro, eis que me caem todos em cima: da Itália, da França,
da Alemanha, da Inglaterra, da Bélgica, da Holanda, da Espanha, da Suécia. Que
sei eu? Da Turquia, da África do Sul, da América Latina, de Israel, onde o
Kung-fu está a bater todos os recordes de bilheteria. E o mais extraordinário é
que apareceram todos ao mesmo tempo: quase que se aperceberam todos no mesmo
momento. Não veio primeiro um país, depois outro na esteira do segundo.
Verificou-se uma absoluta simultaneidade, e em toda parte estes filmes fizeram
milhões. É um fenômeno que me diverte loucamente. Loucamente! Mas, se procura
analisá-lo, perco-me.
Talvez
possa explicá-lo da seguinte maneira: trata-se de uma moda e ninguém sabe
porque é que surge repentinamente uma moda. A essência da moda é seguir
qualquer coisa que não se compreende. Na verdade, suponho que no Ocidente as
mulheres nunca compreenderam porque é que era moda calçar aqueles ridículos
sapatos de finíssimos saltos altos que, além do mais, eram incómodos e faziam
mal aos pés. E no entanto calçavam-nos e até se sentiam sexy com tais sapatos.
E os homens julgavam-nas sexy. Quanto tempo durou a moda dos saltos altos muito
finos?... E de repente acabou. De repente, mais nenhuma mulher usou tais saltos
debaixo dos calcanhares e a maioria passou a usar os horríveis socos com
alturas de 15 a 20 centímetros. E então veem-se tornozelos partidos, pés em
gesso... Peço desculpa. Disse horríveis mas não deveria ter dito porque esses
socos não são nem bonitos nem feios. São a moda e basta: como os filmes
chineses, que não são nem bonitos nem feios, são a moda e basta. São a mudança,
são a loucura. E é inútil estudar porque é que ocorre uma mudança, porque é que
se desencadeia uma loucura. Por isso, quando me perguntam se a moda dos filmes
chineses durará muito tempo, eu respondo: os saltos altos muito finos duraram
bastante e os socos parece que também vão durar. Acontecerá o mesmo com os
filmes chineses, que um dia acabarão. Tal como acabaram os westerns. Tal como
acabou o James Bond. Por agora, no entanto, ainda ocupam o lugar que pertenceu
aos westerns e depois a James Bond.
“A
carnificina é mais direta, mais brutal”
O
princípio é o mesmo, é um princípio baseado naquilo a que vocês chamam
violência e a que eu chamarei ação: um espetáculo rudimentar no qual os bons
estão de um lado e os maus do outro, e depois encontram-se para se destruírem.
Uma fábula para adultos, baseada no antagonismo e essencialmente alimentada de
pancadaria. É como os westerns! Durante 30 anos, vocês, ocidentais, tiveram a
paixão dos westerns, depois, cansaram-se deles e enterneceram-se com os filmes
de guerra. Depois, também se cansaram destes filmes e perderam a cabeça com
James Bond. Oh! O James Bond foi uma paixão arrebatadora! Até incomodaram os
psiquiatras para tentarem justificar essa paixão e o fascínio por aquele
assassino que passava a vida a matar com os seus extraordinários brinquedos.
Depois também o James Bond vos encheu de tédio e então regressaram a antiga
paixão, isto é, ao western, que entretanto mudara de nacionalidade e já não era
americano, mas sim italiano. Nutridos de macarrão, os westerns tinham-se
tornado mais robustos e sanguíneos: estripamentos, torturas, ferocidade de
todos os gêneros. E quantos não fizeram, e quantos não viram? Cem? Duzentos?
Talvez demasiado porque, a certa altura, chegamos nós. Sem winchester. Sem
revólveres. Sem dinamite. E caímos no vosso gosto. Vocês sentiram-se
eletrizados ao descobrirem que também se podia matar só com as mãos ou, no
máximo, com a espada ou com o machado. Um cowboy dispara de longe, um kung-fu
golpeia de perto. É o que acontecera a vocês com o sexo. É lícito que me
perguntem se condeno estes filmes e se me sinto de certo modo culpado. Não, não
os condeno por nada, ou pelo menos não os condeno mais do que condenaria James
Bond. Não me sinto culpado, ou pelo menos não me sinto mais culpado do que
vocês com o vosso James Bond. Não é preciso ver os meus filmes para aprender a
matar. Desde que o cinema existe que vocês, ocidentais, se têm saído bastante
bem no ensino da arte de matar. Os vossos métodos eram mais refinados, os
nossos são mais sanguinários, mas o resultado é rigorosamente o mesmo. Será
porventura melhor ver um homem morrer com um cigarro ou com a bomba atômica? Eu
digo que não e acrescento que a bomba atômica é mais pérfida e injusta porque
quem a larga não arrisca nada. No kung-fu, no corpo-a-corpo, arrisca-se. E
depois repare: o kung-fu não é uma arte que se aprenda no cinema. Para
aprendê-la é preciso começar desde criança, por volta dos 8 ou 10 anos, e para
a conhecer bem são precisos cerca de 5 a 6 anos: conquanto o treino seja diário
e muito rígido.
Quem
o experimenta por puro espírito de emulação é um suicida: faz mal a si próprio,
mesmo antes de fazer mal aos outros. Não, não: nenhum complexo me perturba
perante a responsabilidade destes filmes. A minha profissão é divertir as
pessoas, e que posso eu fazer se as pessoas gostam da brutalidade? Sou
porventura eu que a imponho? Fui porventura eu que a ofereci? Foram vocês que
me vieram procurar.
Já
produzi 150 filmes de Kung Fu
Ora
bem, não tive de o destruir.
O
filme resultou divertido, elegante. Mas lancei-o no mercado sem convicção e foi
um sucesso imediato. Não só em Hong Kong, mas também na Formosa, em Singapura,
na Malásia... Em menos de um ano, rendeu-me 600 mil dólares. Limpos. Perante
isto, que devia eu fazer senão continuar no mesmo caminho? Continuei
cautelosamente: metendo a cor, o dobro do dinheiro, mas não demasiada ação.
Depois mais, sempre um pouco mais, e mais: até perder todos os receios.
Sucedeu, em suma, aquilo.
A
carnificina é mais direta, mais brutal.
Boxer
from Shantung custou-me 400.000 dólares, mas a cena final, que o protagonista
representa com um machado espetado no fígado, durava 20 minutos. Cinco Dedos de
Violência custou bastante menos e valia muito menos. Cinco Dedos de Violência
foi o primeiro filme comprado pelos ocidentais e nunca consegui saber porque
que escolheram este. É possível que lhes tenha agradado a cena em que
arrancavam os olhos àquele desgraçado?! Vendi-lhes o filme por uma ninharia. Os
lucros que fizeram foram fantásticos e assim aprendi a lição. Agora vendo-lhes
caro os meus filmes e faço uma exigência antes de concluir o negócio.
Presentemente,
produzo umas quatro dezenas de filmes destes por ano. Até hoje já produzi 150.
É-me fácil produzi-los: não tem os problemas dos meus concorrentes, porque
tenho os estúdios. Construí-os em 1960, quando vim para Hong Kong, porque se me
tinha metido na cabeça produzir bons filmes chineses. Nesse tempo, os filmes
chineses eram uma porcaria. Eram rodados em cinco ou seis dias, custavam no
máximo 12000 mil dólares cada e faziam-se aí uns 400 por ano. Fui falar com os
do Governo e pedi-lhes um bocado de terreno. Responderam-me encolhendo os
ombros indicando a colina de Walter Bay: "Sabe muito bem que não há
terrenos em Hong Kong, Sr. Shaw. Se lhe servir, fique com aquele".
Servia-me, sobretudo, por causa do preço: 45 cêntimos por o pé (30,48 cm)
quadrado de Hong Kong.
Hoje
este terreno vale pelo menos dólares o pé quadrado e a sua área estende-se por
cerca de dois milhões e meio de pés quadrados. Comprei-o sem discutir e
desbastei o topo da colina. Talhei-o mesmo como se fosse um bolo ou o cimo de
um cone, depois cortei mais umas fatias e aplainei. Um bocadinho. Depois de ter
aplainado, construí os estúdios e mesmo esses, não me custaram praticamente
nada. A mão de obra é baratíssima em Hong Kong. Quanto ao resto, bastou pôr
alguns anúncios nos jornais. Agradava sobretudo o fato de eu oferecer um
apartamento grátis a quem aceitasse trabalhar para mim.Todos os que trabalham
para mim moram nas casas que eu pus à sua disposição: uma centena de
realizadores, uma trintena de argumentistas, um número ilimitado de atores e
atrizes. Tê-los aqui é prático: vigio-os melhore posso convocá-los a qualquer
momento. Mas creio que são felizes comigo, não tem a preocupação de procurar
trabalho porque aqui dentro o trabalho está sempre garantido, gasta um pouco e
ganha um bem. Quanto a mim, estou satisfeito com eles. Trata-se de rapazes e
raparigas obedientes e nada caprichosos. Se existissem sindicatos, creio que
nem sequer se inscreveriam neles: eduquei-os a meu modo. Sabem que eu sou como
um pai para eles e sabem que quando exijo uma coisa, é para bem deles. Por
outro lado, nenhum deles é um divo no sentido que vocês atribuem ao termo.
Fazem os filmes que eu quero e como eu quero. Ganham aquilo que eu decido e do
modo que eu decido. Não se atrevem a rebelar-se, nem a lamentar-se. De resto, o
único verdadeiro divo que existia em Hong Kong, era aquele chinês americano,
que morreu a pouco tempo e que ensinava arte marciais em Los Angeles: Bruce
Lee. Mas não me pertencia, graças a Deus. Por mais de uma vez ele me veio
oferecer os seus serviços, e eu lhe respondi secamente: "Não!". Se eu
preciso de rostos novos, vou buscá-los na escola de declamação. Sim, também
tenho escola de declamação: chama-se The Seven Arts School e todos os anos, 2
mil estudantes tentam ser admitidos, mas é raro eu aceitar muitos. Prefiro
descobri-los eu nas aulas de Kung Fu: primeiro o desporto e depois a
declamação. Para que é que me serviriam os Henry Fonda. Teria de lhes pagar as
férias, reembolsar-lhes as despesas, pagar as atrizes que contracenariam com
eles, os "dublês". Os dublês utilizamos apenas para as perseguições a
cavalo e para os saltos mortais. Todas as outras coisas os meus atores têm de
fazê-los por si. Decidi-o eu. E peço desculpas se digo sempre "eu",
mas sou eu quem manda primeiro em todas as coisas. E só eu. Também os
argumentos, sou eu que os escolho e os arranjos. Aqui, um filme é o resultado
de um trabalho coletivo e impessoal que eu superintendo. Quero dizer: não temos
Charlie Chaplin, aqui não temos Luchino Visconti, Federico Fellini. Senão, como
é que eu faria para ser rico?
O
meu Império Não Tem Fronteiras
Sou
muito rico. Sou extremamente rico. E digo com alegria. Sou tão rico que nem sequer
sei a quanto monta meu patrimônio. É impossível calculá-lo porque está disperso
por muitas partes do mundo. Sei apenas que sou um ultramilionário dos tempos em
que o dinheiro custava menos. Avalie, portanto, o que não serei hoje. Não
esbanjo dinheiro, não pago quase nada de impostos, porque aqui, há um imposto
máximo de 15% e já não me lembro de perder dinheiro num filme. Atrevo-me a
dizer que quanto pior é um filme, mais sucesso ele tem. Mas há uma questão que
me interessa esclarecer: não me tornei rico com os filmes de violência. Os Run
Run Shaw Studios não são mais do que uma parte insignificante da minha imensa
riqueza. Descendo de uma família de Ling Po, perto de Xangai, que já era rica
no princípio do século. Possuíamos terras, cinematógrafos. No tempo do cinema
mudo, já havia 400 milhões de chineses que gostavam de ir ao cinematógrafo. E o
meu irmão mais velho construiu o primeiro em 1924, em Xangai. A história da
minha família dava para escrever um livro. Eu sou o sexto de seis irmãos,
rapazes e raparigas. O meu irmão mais velho é o famoso poeta e realizador
chinês Shaw Tsoi Ong, que ainda hoje se encontra na China, porque nunca quis
deixar Xangai. O meu segundo irmão mais velho é Shaw Tsuin Jam, que se
notabilizou como um dos poucos chineses que pertencem a história do cinema. O
meu terceiro irmão chama-se Shaw Run Mey e é aquele que considero meu sócio. O
sexto, que vem depois de duas irmãs, e que se chama Shaw I Fu, sou eu. Mudei
meu nome para Run Run Shaw porque soa bem em inglês, soa de um modo que diz bem
com aquilo que eu faço. Significa: "Corre, corre, espetáculo!".
Quem
primeiro se lançou nesta história do cinema foi o meu segundo irmão, que não só
dirigiu a filmes, como também vinha vendê-los a Hong Kong. Assim, o meu
terceiro irmão também decidiu ir para Singapura imitá-lo e eu fui atrás dele.
Era em 1927, eu tinha 21 anos e Singapura era o centro do Sueste asiático. Quem
alcançava êxito em Singapura, tornava-se automaticamente um homem de sucesso,
também em Java, na Indochina, no Sião. Então a Tailândia chamava-se Sião, o
Vietnã chamava-se Indochina, a Indonésia chamava-se Java. Eu e meu terceiro
irmão chegamos a Singapura com uma razoável maquia. Mas não a esbanjamos.
Compramos uma porção de terreno por uma ninharia e depois construímos nele um
parque de diversões com espetáculos de teatro, de cabaré e cinematógrafos.
Levamos também o cinematógrafo às zonas rurais: bastava-nos um banco, um pano a
servir de tela, e lá íamos. Os maiores ganhos obtivemos com o cantor de jazz,
isto é, o primeiro filme sonoro. Foi Shaw Run Mey, o meu terceiro irmão, que
comprou o filme no qual eu não acreditava nada. Run Mey, que agora dá pelo nome
de Runme, é um homem de grande cheiro para o negócio. Foi com ele que aprendi a
multiplicar o dinheiro e também a sair dos limites da indústria do espetáculo.
Hoje
o meu império não tem fronteiras. Possuo à vontade uns 140 cinemas, e também
hotéis terras, bancos. Aliás, para ser exato, o grosso do meu capital, é
capital bancário. O Overseas Bank de Singapura, por exemplo, é meu.
O
Shangri-La de Singapura é meu. E tenho três fundações, uma em Singapura, uma e
Hong Kong, e uma em Kuala Lumpur. A primeira vale 200 milhões de dólares. Em
Hong Kong, o meu capital é investido, entre outras coisas, na televisão, no
Mandarin Hotel, em jornais como o China Mail. Mais de 12 mil pessoas trabalham
para mim em Singapura e Hong Kong. E também possuo cinemas em Honolulu, em São
Francisco, em Nova York, em Vancôver, em Los Angeles. Ninharias, é óbvio, mas
ninharias interessante. Na Formosa, a minha indústria de produção, alarga-se, e
em conclusão, fazer dinheiro já não é o propósito da minha vida. O meu
propósito é divertir-me fazendo o que faço, isto é, difundir no mundo a ideia
de um chinês que já não é lacaio submisso, mas sim um líder. Deveria ouvir os
aplausos dos nossos cinemas, quando o herói do filme disse a um branco:
"Julgava que fôssemos um povo de lacaios, não?"
(Publicado originalmente
em Cinéfilo, 20 de dezembro de 1973, nº 12, pp. 20-22)
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