O texto que segue é uma apresentação feita por mim ao filme Golden Swallow, por ocasião da sua exibição em 10 de maio de 2018, no cineclube homônimo.
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Por que Golden Swallow?
Pode não ser tão difícil aceitar que Golden Swallow seja
um filme de paixões, um filme passional. Há o triângulo amoroso, que sustenta a
trama, e seus dois pássaros distantes, andorinha de ouro e roc (ou fênix) de
prata. Há o confronto, a batalha, com o sangue, do qual a andorinha não
conseguiu exilar-se na sua cachoeira escondida, como se algo inevitavelmente
viesse a chamá-la de novo ao seu ofício matador. Mas há algo de estranho em
tudo isso, como que um descompasso neste mundo de impulsos. Parece que o
inevitável, a tragédia posta, não é necessariamente um produto de ações
involuntariamente cumpridas, como se os personagens, seduzidos por algo mais
forte que eles ou enganados pelas armas do destino, perdessem o livre-arbítrio.
Não. A força que retoma o desejo das batalhas é um tanto voluntária, como que o
cumprimento consciente de uma vocação, este, sim, irremediável: o Roc de Prata,
motor narrativo de todo o enredo, é quem impele a heroína para si, como a
deixar pistas, a clamar para que ela volte a encontrá-lo. Ele precisa cumprir
seu próprio fado, deseja isso, e, para tanto, constrói sua própria história,
concentrando tudo em torno de si. É ele quem conduz Golden Swallow a ser
acusada falsamente, para que possa vir a vê-la de novo. Mas é ele, quem, no
fim, a defende. É ele quem mata e é ele quem morre.
É desde aí que se pode dizer que, antes de um filme de
paixão, Golden Swallow é um filme de vocação. Não é a tragédia da luta contra o
destino irremediável, mas a tragédia da via crucis da qual não se pode fugir.
Não é Édipo Rei, é Medeia. E é curioso que este filme tenha, neste mesmo ponto,
a virada mais crucial no protagonismo do Roc de Prata em detrimento da
Andorinha Dourada, estrela no filme anterior da mesma saga, O Grande Mestre
Beberrão. Aqui, se deseja falar sobre o ofício do herói, e do herói masculino,
típico da obra de Chang Cheh: o cavaleiro solitário que luta contra o mundo
inteiro. Nada disso compete à Andorinha, somente ao homem que a ama e a
persegue.
Este
é um primeiro passo (o da análise da vocação do herói) importantíssimo para a
obra do cineasta. E mesmo não estando presente somente neste filme (está também
evidente em The Assassin, por exemplo), é aqui que ganha completude ao
conceber, como já dissemos, uma narrativa quase completamente movida por este
curioso e fatídico “cumprimento dos ofícios”. Daqui são abertas as portas para
outras temáticas-fetiches, sempre em torno do heroísmo, que fascinarão Cheh
futuramente: a amizade, majoritariamente masculina, dos que se unem em torno de
uma causa invencível e o tema da morte do herói como sinal de honra são dois
dos mais importantes e que, inclusive, vieram a influenciar posteriormente o
cinema de seu mais notável pupilo, John Woo.
É
também em Golden Swallow que se veem maduras certas concepções estéticas que
Chang Cheh carregaria ainda por muitos anos, entre elas o uso de pequenos
planos-sequência, algumas vezes pouco perceptíveis enquanto tais, para a
decupagem da ação, no intuito de fazer do espectador partícipe dos atos
virtuosísticos retratados. No entanto, se, aqui, há certos amadurecimentos,
ainda não há, por exemplo, a plenitude no conceito de coreografia da ação
voltada para a beleza e a glória da morte trágica, bem à moda da ópera de
Pequim, como encontraremos em The Boxer From Shantung ou no mais significativo
filme sobre o tema, The Fantastic Magic Baby.
Chegamos,
até aqui, num ponto até onde louvamos certos méritos do filme que hoje
exibiremos. E, de certo modo, isto já é responder à pergunta que intitula este
texto: “por que Golden Swallow”? É claro que nos restaria ainda muito a dizer
sobre a importância deste diretor, também poeta, também jornalista, também
crítico, Chang Cheh. É claro que as grandes obras, como esta, têm algo de
inesgotável em si e que poderíamos dar conta por mais algum tempo de enumerar
as incontáveis qualidades da “Andorinha Dourada”. Mas é possível que haja um
modo mais simples de resolver esta questão: talvez esta resposta resida na
frontalidade estética para a qual o diretor remete todos os elementos de sua
tragédia. É um filme de vocação, como já dito, de enfrentamento. Não há
meias-verdades, meias-vidas, meias-mortes. Há o confronto com o mundo, com o
livre-arbítrio, com a graça. E tudo converge para que isso se dê da forma mais
honesta possível: no nosso Roc de Prata não há nem um pouco de maniqueísmo, há
um pecador como todos nós. Mas nele também reside o mártir, o santo que é
imolado ao fim. Neste ponto, o filme se torna algo como um resumo sobre a vida
humana (e, talvez, sobre a vida eterna, na eternidade do heroísmo). E o que se
poderia esperar de grande na arte além de uma espécie de síntese daquilo que é
a relação do homem com o criado? Se a arte é imitação, naturalmente é imitação
do mundo e do que está nele. Se não há de se imitar Deus, se não há de se
imitar os anjos, resta-lhe o galardão de decifrar o significado da existência.
Golden
Swallow é, assim, um filme-exemplo. Não o melhor filme do mundo, mas uma
espécie de caminho a este ideal de arte que aqui expusemos. É por isto que o
exibimos hoje, é por isso que carregamos seu nome.
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