sábado, 9 de junho de 2018

The Fantastic Magic Baby ou uma Errata às Escolas de Shaolin



            Há alguns meses, publiquei neste mesmo blog um artigo intitulado “As Duas Escolas de Shaolin”, em que postulava que, historicamente, existem duas escolas de cinema de ação em Hong Kong, inauguradas na Shaw Brothers e desenvolvidas dentro e fora dela. Estas escolas estariam arraigadas por uma estética ou mais poética (aquela inaugurada por Han-Hsiang Li) ou mais prosaica (aquela inaugurada por Chang Cheh), tudo isto determinado por uma série de motivos, os quais destrincho no referido artigo.

            O texto que segue, no entanto, é uma espécie de errata a este escrito precedente, não exatamente no sentido de suplantar a sua ideia básica ou de nele gerar qualquer revolução definitiva, mas de complementá-lo e de aprimorá-lo em certas terminologias que lá estavam imprecisas e em certas omissões postas em relação ao itinerário histórico tomado pelas tais “duas escolas de Shaolin”.


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            Em primeiro lugar, façamos as correções terminológicas as quais supracitamos, por serem as mais simples e mais óbvias: é bastante temerário e vago dizer que a escola inaugurada por Li é advinda, generalizadamente, de uma “ópera chinesa”. No artigo, me refiro algumas vezes ao parentesco desta escola especificamente com a ópera huangmei, o que seria muito mais preciso e correto, porque há não só um, mas vários gêneros de ópera na China, muitas vezes díspares em pontos fulcrais no que concerne ao método de encenação, no gestual dos atores, na música, etc. Todo o caráter pictórico que cito no artigo, todos os caracteres que fundam parte da encenação inaugurada por Li e herdada em King Hu são validamente verificados como provenientes da ópera chinesa, e isto é correto, no entanto, é necessário clarificar que é deste tipo específico de espetáculo operístico que provém tal herança.

            Outra correção a ser feita, esta menos óbvia e mais interessante, é acerca da visão colocada sobre a obra de Chang Cheh e sua raiz literária. É natural que, ao tratar o artigo mais propriamente de “escolas estilísticas” em geral do que de “estilos de autores” em específico, tenham sido omitidas especificidades da estética de cada diretor quando estas não influenciaram de fato na genealogia da qual se tratava. Deste modo, dizer que a escola de Chang é terminantemente uma escola literária e que foi, primordialmente, a veia literária de sua estética que fundou tal escola não está incorreto. No entanto, isto nos conduz a uma falsa impressão de que nenhuma arte possa ter influenciado, terminantemente e em algum momento, a estética do diretor e, por conseguinte e indiretamente, a escola de cinema de ação por ele fundada.

            Digo isto porque é bem notório que a carreira de Chang Cheh se divide em dois momentos: uma primeira fase onde impera a constituição narrativa como moldura bem presente para os verdadeiros objetos de apreciação (as cenas de ação), de modo que, inclusive, são os elementos literários, narrativos, que darão força crucial à significação de certas ações e de certos elementos estéticos (por exemplo: a força da batalha final, seguida de suicídio, em The Assassin, reconfigurada à luz do prenúncio deste acontecimento no início do filme); e uma segunda fase, onde os elementos narrativos se tornam cada vez mais exíguos em prol de obras que visam um espetáculo coreográfico praticamente contínuo. 

A primeira fase, geralmente mais lembrada por causa de sua profusão de clássicos, se caracteriza por passos entre a construção e a consolidação de temas muito caros ao autor, entre os quais se encontra um modelo de herói trágico bastante típico: o cavaleiro solitário (à moda dos westerns, naturalmente) que luta, por vingança ou redenção, contra tudo e todos que se impõem em seu caminho. Tal modelo admite variáveis, no entanto, com o herói não sendo um homem só, mas um grupo de homens aliados, mas, de mesmo modo, solitários. Nesta variável surge, a propósito, outro grande tema de Cheh, o da amizade masculina.

Por consequência e como clímax da glória trágica deste heroísmo, há, muitas vezes, a morte do herói ritualizada, numa espécie de imolação sacrificial como prova de honra. Aí é bem discernível a influência literária que se impõe sobre os significados da ação: a tragédia escrita, a construção do caráter do herói, delimita a glória da tragédia encenada, coreografada, que é o ritual de sua morte.

Esta forma típica de imolação heroica, gerada e consagrada nos primeiros anos de Chang Cheh, no entanto, será elemento fulcral para que se entenda com mais clareza as influências e motivações que regeram o segundo momento de sua carreira. E é aí que adentramos ao filme que intitula este texto, The Fantastic Magic Baby (1975).

Provavelmente seu filme mais exótico, esta obra é adaptação da famosíssima Jornada a Oeste, com foco espacial no personagem do Menino Vermelho e em suas aventuras e aprendizados no mundo dos deuses. É, inicialmente, um filme típico em relação àquilo que caracterizamos como a segunda fase do diretor: uma profusão contínua de cenas de ação quase ininterruptas e esvaídas de um significado narrativo profundo. No entanto, o exotismo não está propriamente nisso: pouco depois dos 60 minutos de projeção, o filme “acaba”: “another Shaw production”. Reaparece na tela um novo filme, um documentário que pretende explicar certos elementos do “filme anterior”: um narrador explica os elementos centrais da Ópera de Pequim, enquanto imagens deste tipo de arte são projetadas. É esclarecido que filmes como o que nós acabamos de assistir não vêm “do nada”, mas de uma longa tradição de outras artes coreográficas que, em suas peculiaridades, adaptaram já antes lendas como aquelas que acabamos de assistir. Chang Cheh se insere, assim, conscientemente na continuidade desta tradição.

Este documentário dura cerca de 23 minutos, quando, mais uma vez, o The End aparece na tela. E mais uma vez, um “terceiro filme” começa, mais uma vez um documentário. Agora o narrador é mais específico: serão projetadas cenas da Ópera de Pequim, mas somente de um tipo peculiar: a morte do herói. E, naturalmente, vemos presentes todos os elementos que anos antes eram anunciados nos filmes de Cheh: a morte como prova de honra, ritualizada, bastante lenta, pois o herói nunca morre com facilidade. Jorra de seu ventre bastante sangue. Há a onipresente estripação, onde o ato de segurar as próprias vísceras é um sinal de força. Depois da apresentação de muitos exemplos da coreografia e dos elementos típicos desta forma de encenação, o filme, de fato, tem seu terceiro e definitivo final.

Este último documentário, evidentemente, torna-se um dado central para o entendimento da obra do diretor, estabelecendo dados imprescindíveis:

1 – Desde seus primórdios, o autor sofreu influências da Ópera Pequinesa, visto que ele mesmo reivindica parentesco com essa forma de arte;

2 – A principal diferenciação entre o processo estético que constitui seus primeiros filmes e os segundos é que, nos primeiros casos, os filmes são regidos e delimitados pela tragédia literária, enquanto, nos demais, as obras se delineiam pela estética operística pequinesa, mesmo que muitas vezes conservando o caráter trágico;

3 – O ponto central de sutura entre a metodologia cenográfica da primeira fase de Cheh e da sua segunda fase é a encenação peculiar da morte do herói.

  
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Até o momento, porém, todos os fatores aqui apresentados não seriam capazes de discernir uma hereditariedade entre o parentesco próprio de Chang Cheh com a Ópera de Pequim e aqueles que por ele foram influenciados depois. A questão a se estabelecer seria: os métodos coreográficos deste tipo operístico foram herdados, de algum modo, por John Woo, o seu “pupilo”, que é hoje o depositário da sua escola de cinema de ação? Ou o que foi herdado seria somente o aspecto literário-trágico que se manifestaria plasticamente de modo análogo, em Woo, a Cheh?

A primeira opção é, certamente, a mais correta. Em Woo, há a supressão da ação enquanto combate corpo-a-corpo, da ação enquanto um ato coreográfico virtuosístico a ser contemplado. Isto é natural, porque se em Cheh temos punhos e espadas, em Woo temos armas de fogo. De modo que não se poderia dizer, stricto sensu, que a coreografia da morte do herói daquele diretor (ou mesmo suas derivações que, como vimos, apareceriam na sua segunda fase) estaria presente, enquanto coreografia, no cinema deste. 

No entanto, nada disto impede que verifiquemos certos dados que podem exemplificar esta hereditariedade que buscamos: em Woo (ou pelo menos nos filmes que mais caracterizam sua estética) há o mesmo martírio do herói na hora da morte, lenta e penosa, o que entra em analogia com o suplício final e heroico no cinema de Chang Cheh; de mesmo modo, agora a estripação característica da ópera pequinesa é substituída pelo excesso de feridas proferidas no herói, surpreendentemente forte na queda. Há, ainda, a utilização da câmera lenta para a melhor apreciação da violência, do heroísmo e da dor neste suplício final, o que em Cheh se tornou bastante recorrente e em Woo se verifica com evidência, por exemplo, no desfecho de The Killer.


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Sobre as congruências entre os dois diretores, no entanto, esta é só uma verificação superficial, mesmo que relevante. Haveria de se fazer uma análise crítica mais minuciosa dos mecanismos de ambos para a composição da ação virtuosística, principalmente delineando a evolução desta composição de seu ponto de partida (a coreografia de arte marcial) para seu ponto de chegada (a ação perpetrada mais pelas máquinas, as armas de fogo, do que pelos corpos).

No entanto, desde já é possível restabelecer uma mais completa genealogia que leve do arcabouço de influências de Cheh ao cinema de Woo. Neste sentido, proponho, como conclusão deste texto, o seguinte esquema:






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