Há alguns meses, publiquei neste mesmo blog um artigo
intitulado “As Duas Escolas de Shaolin”, em que postulava que, historicamente,
existem duas escolas de cinema de ação em Hong Kong, inauguradas na Shaw
Brothers e desenvolvidas dentro e fora dela. Estas escolas estariam arraigadas
por uma estética ou mais poética (aquela inaugurada por Han-Hsiang Li) ou mais
prosaica (aquela inaugurada por Chang Cheh), tudo isto determinado por uma
série de motivos, os quais destrincho no referido artigo.
O texto que segue, no entanto, é uma espécie de errata a
este escrito precedente, não exatamente no sentido de suplantar a sua ideia
básica ou de nele gerar qualquer revolução definitiva, mas de complementá-lo e
de aprimorá-lo em certas terminologias que lá estavam imprecisas e em certas
omissões postas em relação ao itinerário histórico tomado pelas tais “duas
escolas de Shaolin”.
***
Em primeiro lugar, façamos as correções terminológicas as
quais supracitamos, por serem as mais simples e mais óbvias: é bastante
temerário e vago dizer que a escola inaugurada por Li é advinda,
generalizadamente, de uma “ópera chinesa”. No artigo, me refiro algumas vezes
ao parentesco desta escola especificamente com a ópera huangmei, o que seria
muito mais preciso e correto, porque há não só um, mas vários gêneros de ópera
na China, muitas vezes díspares em pontos fulcrais no que concerne ao método de
encenação, no gestual dos atores, na música, etc. Todo o caráter pictórico que
cito no artigo, todos os caracteres que fundam parte da encenação inaugurada
por Li e herdada em King Hu são validamente verificados como provenientes da
ópera chinesa, e isto é correto, no entanto, é necessário clarificar que é
deste tipo específico de espetáculo operístico que provém tal herança.
Outra correção a ser feita, esta menos óbvia e mais
interessante, é acerca da visão colocada sobre a obra de Chang Cheh e sua raiz
literária. É natural que, ao tratar o artigo mais propriamente de “escolas
estilísticas” em geral do que de “estilos de autores” em específico, tenham
sido omitidas especificidades da estética de cada diretor quando estas não influenciaram
de fato na genealogia da qual se tratava. Deste modo, dizer que a escola de
Chang é terminantemente uma escola literária e que foi, primordialmente, a veia
literária de sua estética que fundou tal escola não está incorreto. No entanto,
isto nos conduz a uma falsa impressão de que nenhuma arte possa ter
influenciado, terminantemente e em algum momento, a estética do diretor e, por
conseguinte e indiretamente, a escola de cinema de ação por ele fundada.
Digo isto porque é bem notório que a carreira de Chang
Cheh se divide em dois momentos: uma primeira fase onde impera a constituição
narrativa como moldura bem presente para os verdadeiros objetos de apreciação
(as cenas de ação), de modo que, inclusive, são os elementos literários,
narrativos, que darão força crucial à significação de certas ações e de certos
elementos estéticos (por exemplo: a força da batalha final, seguida de
suicídio, em The Assassin, reconfigurada à luz do prenúncio deste acontecimento
no início do filme); e uma segunda fase, onde os elementos narrativos se tornam
cada vez mais exíguos em prol de obras que visam um espetáculo coreográfico
praticamente contínuo.
A
primeira fase, geralmente mais lembrada por causa de sua profusão de clássicos,
se caracteriza por passos entre a construção e a consolidação de temas muito
caros ao autor, entre os quais se encontra um modelo de herói trágico bastante
típico: o cavaleiro solitário (à moda dos westerns, naturalmente) que luta, por
vingança ou redenção, contra tudo e todos que se impõem em seu caminho. Tal
modelo admite variáveis, no entanto, com o herói não sendo um homem só, mas um
grupo de homens aliados, mas, de mesmo modo, solitários. Nesta variável surge,
a propósito, outro grande tema de Cheh, o da amizade masculina.
Por
consequência e como clímax da glória trágica deste heroísmo, há, muitas vezes,
a morte do herói ritualizada, numa espécie de imolação sacrificial como prova
de honra. Aí é bem discernível a influência literária que se impõe sobre os
significados da ação: a tragédia escrita, a construção do caráter do herói,
delimita a glória da tragédia encenada, coreografada, que é o ritual de sua
morte.
Esta
forma típica de imolação heroica, gerada e consagrada nos primeiros anos de
Chang Cheh, no entanto, será elemento fulcral para que se entenda com mais
clareza as influências e motivações que regeram o segundo momento de sua
carreira. E é aí que adentramos ao filme que intitula este texto, The Fantastic
Magic Baby (1975).
Provavelmente
seu filme mais exótico, esta obra é adaptação da famosíssima Jornada a Oeste,
com foco espacial no personagem do Menino Vermelho e em suas aventuras e
aprendizados no mundo dos deuses. É, inicialmente, um filme típico em relação
àquilo que caracterizamos como a segunda fase do diretor: uma profusão contínua
de cenas de ação quase ininterruptas e esvaídas de um significado narrativo
profundo. No entanto, o exotismo não está propriamente nisso: pouco depois dos
60 minutos de projeção, o filme “acaba”: “another Shaw production”. Reaparece
na tela um novo filme, um documentário que pretende explicar certos elementos
do “filme anterior”: um narrador explica os elementos centrais da Ópera de
Pequim, enquanto imagens deste tipo de arte são projetadas. É esclarecido que
filmes como o que nós acabamos de assistir não vêm “do nada”, mas de uma longa
tradição de outras artes coreográficas que, em suas peculiaridades, adaptaram
já antes lendas como aquelas que acabamos de assistir. Chang Cheh se insere,
assim, conscientemente na continuidade desta tradição.
Este
documentário dura cerca de 23 minutos, quando, mais uma vez, o The End aparece
na tela. E mais uma vez, um “terceiro filme” começa, mais uma vez um
documentário. Agora o narrador é mais específico: serão projetadas cenas da
Ópera de Pequim, mas somente de um tipo peculiar: a morte do herói. E,
naturalmente, vemos presentes todos os elementos que anos antes eram anunciados
nos filmes de Cheh: a morte como prova de honra, ritualizada, bastante lenta,
pois o herói nunca morre com facilidade. Jorra de seu ventre bastante sangue.
Há a onipresente estripação, onde o ato de segurar as próprias vísceras é um
sinal de força. Depois da apresentação de muitos exemplos da coreografia e dos
elementos típicos desta forma de encenação, o filme, de fato, tem seu terceiro
e definitivo final.
Este
último documentário, evidentemente, torna-se um dado central para o
entendimento da obra do diretor, estabelecendo dados imprescindíveis:
1
– Desde seus primórdios, o autor sofreu influências da Ópera Pequinesa, visto
que ele mesmo reivindica parentesco com essa forma de arte;
2
– A principal diferenciação entre o processo estético que constitui seus
primeiros filmes e os segundos é que, nos primeiros casos, os filmes são
regidos e delimitados pela tragédia literária, enquanto, nos demais, as obras
se delineiam pela estética operística pequinesa, mesmo que muitas vezes
conservando o caráter trágico;
3
– O ponto central de sutura entre a metodologia cenográfica da primeira fase de
Cheh e da sua segunda fase é a encenação peculiar da morte do herói.
***
Até
o momento, porém, todos os fatores aqui apresentados não seriam capazes de
discernir uma hereditariedade entre o parentesco próprio de Chang Cheh com a
Ópera de Pequim e aqueles que por ele foram influenciados depois. A questão a
se estabelecer seria: os métodos coreográficos deste tipo operístico foram
herdados, de algum modo, por John Woo, o seu “pupilo”, que é hoje o depositário
da sua escola de cinema de ação? Ou o que foi herdado seria somente o aspecto
literário-trágico que se manifestaria plasticamente de modo análogo, em Woo, a
Cheh?
A
primeira opção é, certamente, a mais correta. Em Woo, há a supressão da ação
enquanto combate corpo-a-corpo, da ação enquanto um ato coreográfico
virtuosístico a ser contemplado. Isto é natural, porque se em Cheh temos punhos
e espadas, em Woo temos armas de fogo. De modo que não se poderia dizer,
stricto sensu, que a coreografia da morte do herói daquele diretor (ou mesmo
suas derivações que, como vimos, apareceriam na sua segunda fase) estaria
presente, enquanto coreografia, no cinema deste.
***
Sobre
as congruências entre os dois diretores, no entanto, esta é só uma verificação
superficial, mesmo que relevante. Haveria de se fazer uma análise crítica mais
minuciosa dos mecanismos de ambos para a composição da ação virtuosística,
principalmente delineando a evolução desta composição de seu ponto de partida
(a coreografia de arte marcial) para seu ponto de chegada (a ação perpetrada
mais pelas máquinas, as armas de fogo, do que pelos corpos).
No
entanto, desde já é possível restabelecer uma mais completa genealogia que leve
do arcabouço de influências de Cheh ao cinema de Woo. Neste sentido, proponho,
como conclusão deste texto, o seguinte esquema:
Nenhum comentário:
Postar um comentário