quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Mirliflores e Becassines, por Jean-Luc Godard







Mirliflores e Becassines[1]


O grotesco é um gênero mais do que fácil. Ele demanda mais sensibilidade que inteligência e tantos diretores, entre os mais consagrados, quebram seus lombos com isso. Impossível, aqui, enganar, para se exilar na torre de marfim dos incompreendidos. Não obtenha os efeitos desejados, se os seus palhaços não perturbarem ninguém, e você passará, é justo, por um tolo ou, até, por um desajeitado. Dura lei, certamente, mas que permite julgar um cineasta.
Não merece sucesso na comédia senão aquele que a leva a sério, tática mil vezes mais eficaz que aquela de ironizar e de no drama. É por isso que um Tashlin bem informado vale por dois Billy Wilder. O fato é que não se aprende a fazer os truques do melhor gagman de Bob Hope (O Filho do Treme-Treme). E seria melhor pensar mil vezes antes de querer dizer que O Tenente Era Ela é uma mera cópia, enquanto o realizador de Romance de Minha Vida é um original, um certo malfeitor que se dá ao luxo de imitar os bobos de Wilder como Fangio imita Porfirio Rubiosa; ele é mais hábil, não é esnobe, no enquadramento vai mais rápido, e, assim, vai mais longe; não nasceu ontem.
O Tenente Era Ela, no estilo do Voltaire de Candide ou do Hitchcock de Rich and Strange, se perde nas desventuras de um casal de idiotas, cujo amor imenso leva às brigas do lar e, depois, à ruptura. Imaginem Bécassine e o jovem mais bobo que lhes vier à mente, procurando demonstrar que se adoram e, justamente por isso, acabam por se odiar rapidamente. A felicidade não é alegre, diz Max Ophüls, porque a alegria é o contrário da felicidade, assegura Frank Tashlin. Artistas e Modelos não o deixa negar: não há filme mais desolador, se humor mais atroz, mais cáustico, onde a riqueza da invenção agrava a cada segundo a pobreza de situações: o espectador ri, desconfortável no início, num riso forçado, experimentando da vergonha; ri de novo, mecanicamente, preso numa implacável engrenagem de tolices, e acaba por gargalhar porque “isso não era engraçado, afinal”. Gargalhada breve, no cume da estupidez, mas um cume do mesmo gênero que em Bouvard e Pécuchet.   
 Mas voltemos ao nosso ponto de partida. Sem ideia de partida, justamente, em Frank Tashlin. Está aí a originalidade. Só o que conta é a partida, uma cena ao extremo limite do absurdo, no louco e feroz universo do Pim, Pam, Poum de nossa infância.
Se vê que Tashlin guarda o melhor de Lubitsch, de Cluny Brown e To Be or Not To Be. A comédia americana está morta. Que seja.
Viva a comédia americana.



(Jean-Luc Godard, Cahiers du Cinéma, n. 62, agosto-setembro de 1956, p. 47-48. Tradução: Yuri Ramos)



[1] Mirliflore – Palavra intraduzível para o português, do francês arcaico, que designa “aquele que aparenta ser mil flores” (daí a etimologia da palavra). Em suma, caracteriza aquele que, por seu charme e elegância, brilha, ou procura brilhar.
Bécassine – Personagem principal de um quadrinho infantil francês.

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