sexta-feira, 12 de abril de 2019

John Farrow - O cinema teológico, por Yuri Ramos



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O nome de John Farrow, aparentemente inaudito pela cinefilia atual, parece ter sofrido não só hoje, mas já há bastante tempo, a marca de pechas não muito justas que recaem sobre sua estranha passagem pelo mundo do cinema. Antes de ser diretor, foi escritor e marinheiro da Royal Naval Academy, título que o fez chegar a Hollywood como conselheiro para a produção de filmes marítimos. Atuará inicialmente, para além dessa função de conselheiro, como roteirista para, mais tarde, chegar à direção. Convertido ao catolicismo, será um dos mais influentes membros da “liga da decência hollywoodiana” e esta, talvez, permaneça sua principal marca a ser maldita por aqueles críticos que, mesmo lhe tecendo elogios, consideraram-lhe um mero moralista.

            Independentemente das benesses ou dos malefícios trazidos pelos grupos moralizadores presentes no cinema clássico americano, é fato que a cosmovisão religiosa de Farrow atingiu de modo definitivo sua obra, mesmo que, em algumas ocasiões, de modo não tão evidente.

            Seu melhor filme, “O Enviado de Satanás”, é uma prova bastante clara disto, mas talvez não da forma como os críticos do diretor possam supor. Seu sentido religioso não se constitui meramente a partir de uma mensagem moral ou da formulação de personagens que possam aludir a moldes típicos da lide do homem com o problema do bem e do mal.  Isto, naturalmente, não invalida o fato de termos, aqui, presentes vários arquétipos humanos cujas personalidades são erigidas num campo para além da imagem projetada: Nick Beal, o grande demônio interpretado por Ray Milland é o tipo perfeito do tentador que cerca por todos os lados suas vítimas; aqueles que estão a sua volta e que por ele se deixam conduzir são os homens, quotidianamente inseridos no “mistério da iniquidade” disposto neste mundo, que, muitas vezes, os cega e os afasta da verdade. No entanto, em Farrow este “senso teológico” vai mais além e recai mesmo para as formas fílmicas imagéticas e, mais especialmente, para sua mise-en-scène.

            Este dado denota algo de mais profundo e mais específico sobre o fazer artístico presente em sua obra: se tem o cinema uma das vocações da chamada “arte-total”, no sentido de ser uma daquelas modalidades artísticas que têm a capacidade de mimetizar as mais diversas dimensões sensíveis da realidade, de certa forma, mais do que outros artistas, o cineasta é chamado a dar a ver sua cosmovisão sobre o mundo a partir da construção de uma espécie de mundo-reflexo ou de mundo-paralelo, que é sua obra de arte: o filme. Não se trata necessariamente de que esta afirmação tenha, por detrás, uma obrigação para com o realismo, ou seja, para com a imitação fiel do mundo tal e qual se lhe percebe: este mundo-reflexo é, antes de tudo, um objeto simbólico que sinaliza em direção à realidade (e à visão cosmológica acerca dela), mesmo que, por vezes, de modo alegórico ou metafórico. E é natural que, no cinema dramatizado, onde o mundo, por assim dizer, é a cena, o dever do cineasta, para além da inserção de tipos humanos, de narrativas, de episódios e situações, no corpo constitutivo do filme, é também o de recriar a realidade não só por esses elementos, mas pela mise-en-scène, ou seja, pela própria modulação imagético-espacial daquilo que é filmado. É isto, no fundo, o cumprimento daquele velho jargão instituído por Alexandre Astruc e que definia a autoralidade no cinema: a saber, que o “autor cinematográfico” é aquele cuja escrita é a escrita da câmera, a escrita da imagem, da caméra-stylo. E é tudo isto que vemos na estilística presente na obra de John Farrow. Para além dos “moralismos”, sua teologia e sua religião se constituíram em imagens, em concepções de espaço, enfim, numa estética cinematográfica própria, onde aquilo que meramente concerne ao “escritor Farrow”, àquele que edifica personagens, homens a lidar com uma realidade perversa e com o problema de Deus, é só um detalhe.

            Neste “O Enviado de Satanás”, estes aspectos são bem evidentes: Ray Milland não controla somente “os destinos” dos ingênuos, mas os espaços onde podem ou não transitar: numa conversa sobre o futuro político de Thomas Mitchell, Farrow aplica um tênue plano-sequência que mostra as idas e vindas do impassível Thomas dentro de uma sala. Ray permanece parado, destacado em primeiro plano. Tudo gira em torno dele e quando o homem a quem ele encarcera o ordena que saia da sala, diz: “Acho que já acabei”. Nada lhe escapa das mãos. Numa outra ocasião, ao ir para o apartamento de Audrey Totter para convencê-la a fazer um discurso ensaiado peara o mesmo Mitchell, há um recurso dramatúrgico genial, por parte de Farrow, com planos que se duplicam e se refletem: Milland ensaia a moça lhe mandando dizer certas palavras, mas, ao longo do discurso, certa coreografia impera: a mulher se levanta para repetir algumas palavras, em outro momento se sentam os dois, lado a lado, numa poltrona. Ela está vestida de branco.  Quando percebe que Mitchell está vindo, entra para o quarto e Ray se esconde. Ela volta à sala para receber o inocente que havia chegado, mas, agora, vestida de preto. Tudo ocorre novamente, como se fosse imagem da cena anterior: os dois sentados na poltrona, os elementos coreográficos. O pouco que muda é demonstração sutil de um dado cruel: a representação pode ser quase a mesma, mas, agora, o que se encenava era a rendição de dois inocentes aos poderes do mal, não mais o império de um demônio a mandar e desmandar numa mulher comum. Essas sutilezas dão conta de que Farrow não pretendeu fazer um filme que simplesmente narrasse o afastamento do homem em relação à graça ou sobre a sedução do Mal. Sua obra é um verdadeiro exercício virtuosístico que utiliza-se das formas cênicas para afirmar uma verdade eterna: aqueles que consentem com o Inimigo estão presos por ele numa cegueira que conduz (algumas vezes em sentido literal) à morte.

              Esta estilística, no entanto, não estará localizada somente em “Alias Nick Beal”, mas em vários outros sucessos de sua carreira. Notadamente, “The Big Clock”, com o mesmo Ray Milland, utilizará mais uma vez a linguagem claustrofóbica dos planos-sequência para demonstrar as intempéries do destino que, assim como aos limites da imagem filmada, são inescapáveis.  Neste e ainda em outros filmes sua homogeneidade autoral se verificará patente. Seu domínio virtuosístico sobre a decupagem e a coreografia chegarão aos níveis de excelência perpetrados por outros tão famosos por se utilizarem destes mecanismos, como até mesmo Kenji Mizoguchi. Sua obra merecia mais do que a pecha viciada que ganhou por aqueles que, algumas vezes, parecem amar mais a liberdade artística do que o bem das obras de arte. Seu moralismo, se é que assim pode ser chamado, era muito mais complexo do que se imaginou. Era uma teologia cinematográfica.

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