O
filme de Pál Fejös, Solidão, de 1928,
é atualmente considerado um dos auges do cinema mudo americano, e até mesmo
internacional, sendo comparável a obras-primas como Aurora (1927) de F.W. Murnau e
A Turba (1928) de King Vidor. No entanto, foi apenas recentemente que
chegou a adquirir reconhecimento semelhante ao desses filmes. O próprio Fejös,
apesar de ter sido anunciado pela revista Close-Up, em 1928, como um iniciante
no mesmo nível de Ernst Lubitsch, Murnau, Paul Leni e Henry King, ficou
praticamente esquecido depois que deixou a América em 1931, tendo sobrevivido
apenas três anos lá como diretor. Inicialmente, Solidão recebeu críticas favoráveis, mas foi pego na transição
caótica dos filmes mudos para os sonoros nos anos finais da década de 1920, e
foi pouco visto ou mencionado por quase o próximo meio século, até as
redescobertas e restaurações, a partir da década de 1980, retornando assim ao
seu esplendor original, para que o público pudesse se maravilhar novamente.
Seus
filmes americanos, no entanto, são apenas parte de uma carreira extraordinariamente
variada que também incluiu filmes em sua Hungria natal, na Áustria, em França e
na Dinamarca, além de documentários antropológicos na Tailândia, em Madagascar,
na América do Sul e em várias ilhas do Pacífico Sul. Sua biografia padrão até
hoje, de autoria de seu amigo John W. Dodds, corretamente atribui a ele várias
"vidas", todas elas importantes e altamente bem-sucedidas, e todas
marcadas por instintos profundamente humanitários. Ele é conhecido por ter
mantido uma independência feroz ao longo de suas muitas buscas, uma atitude que
muitas vezes o colocou em conflito com os produtores e resultou em batalhas que
ele às vezes venceria e, particularmente em Hollywood, às vezes perderia.
Certos aspectos de sua vida ainda são um mistério, e o crítico francês Philippe
Haudiquet se referiu a ele como um “mythomane”
(fantasista) encantador que contou diferentes versões de sua biografia a
pessoas diferentes em épocas diferentes - talvez para sua própria diversão, em
vez de qualquer tentativa deliberada de enganar. Mas já se sabe o suficiente
sobre esse homem notável e multifacetado para seguir os vários caminhos de sua
vida com certa precisão.
Nascido
Fejös Pál (em ordem húngara de sobrenome primeiro) em Budapeste, no ano de
1897, de pais da aristocracia austro-húngara, ele desenvolveu um interesse
precoce em medicina e obteve um diploma nesta área, talvez na Hungria, ou
talvez mais tarde, nos Estados Unidos (as fontes variam sobre isso). Mas também
era fascinado por teatro e cinema, e dirigiu seis ou sete filmes entre 1920 e
1923 (todos agora considerados perdidos), assim como peças e óperas. Ele também
sempre foi fascinado pela América e partiu para os Estados Unidos em 1923,
chegando em outubro. Sem nenhum contato real e contando apenas com um
conhecimento mínimo de inglês, Pál viveu em Nova York em pobreza aguda por
algum tempo, até que seu histórico médico o levou a trabalhar no Instituto
Rockefeller (críticos de seus filmes americanos frequentemente o chamava de Dr.
Fejös). Mas ele estava determinado a entrar no cinema e assim, partiu para Los
Angeles, em 1926. Lá, depois de obter trabalho esporádico como roteirista e
produtor de teatro, de alguma forma Pál se encontrou com um jovem rico chamado
Edward M. Spitz, que possuía cinco mil dólares, os quais ele queria
desesperadamente investir em um filme, e por isso, estava procurando por um
roteiro e por um diretor. (Por mais improvável que essa história pareça, ela
parece ser exata e foi totalmente aceita pelos críticos iniciais do filme).
Exercitando
seu charme considerável, Fejös conseguiu persuadir Georgia Hale, recém-saída de
sua atuação em The Gold Rush de
Charlie Chaplin, a trabalhar para ele por nada, e então, alugou o espaço do
estúdio de hora em hora, fazendo uso de qualquer coisa que estivesse preparada
para outros filmes que estavam sendo filmados na época; obteve estoque de
filmes brutos a crédito; e contratou um jovem cinegrafista, Leon Shamroy (que
ganharia quatro Oscars por sua fotografia nos anos posteriores). Ele escreveu
um roteiro que lhe permitiu manipular esses vários ingredientes com sucesso e
fez The Last Moment (1927), após o
qual convidou dois críticos proeminentes, Welford Beaton, do Film Spectator, e
Tamar Lane, do Film Mercury, para uma prévia particular. Ambos imediatamente
saíram e escreveram resenhas elogiosas, com Beaton encabeçando a sua com o
título “Apresentando a Você o Sr. Paul Fejös, Gênio”. Beaton então providenciou
para que Chaplin tivesse uma sessão privada do filme, e Fejös, incapaz, por sua
própria conta, de pagar um táxi, levou seis latas pesadas de filme de 35 mm a
pé para a casa de Chaplin em Beverly Hills, deixando-as aos cuidados de um
mordomo desnorteado. Depois de ver o filme, Chaplin concordou com Beaton e a
United Artists decidiu lançá-lo.
A
julgar pelas descrições do filme que sobreviveram, foi muitos anos à frente de
seu tempo e estruturalmente próximo ao Eu
te Amo, Eu te Amo, de Alain Resnais, de 1968, retratando os últimos
segundos da vida de um homem que se afoga; como em fragmentos, cenas de seu
passado brilham diante dele em ordem não-cronológica. Ele foi favoravelmente
criticado pelo New York Times e por outros (a Variety chamou de
"interessante, esquisito e ligeiramente mórbido", mas com
possibilidades comerciais), e apareceu na lista de muitos críticos dos dez
melhores filmes do ano. Os anúncios brilhantes trouxeram ofertas a Fejös da
maioria dos grandes estúdios, mas foram subsequentemente dissuadidos por sua
insistência em manter o controle artístico completo. Carl Laemmle Jr., no
entanto, filho do chefe da Universal Studios, que havia sido conquistado pelo
filme, convenceu seu pai a deixar Fejös fazer algo em seus próprios termos.
Rejeitando todos os roteiros oferecidos a ele, Fejös escolheu um esboço de três
páginas que o estúdio comprou por vinte e cinco dólares e anunciou que queria
filmar isso. O resultado foi Solidão,
originalmente totalmente silencioso, mas pouco depois lançado como “part-talkie”, como aconteceu também com
vários outros filmes desse período de transição.
Embora
Fejös permanecesse tecnicamente inovador e imaginativo nos filmes que se
seguiram, Solidão marcou o ponto alto
de sua liberdade criativa em Hollywood. Ele foi seguido pelo mudo The Last Performance (também conhecido
como Erik, o Grande), uma tarefa que ele mais tarde disse que aceitou apenas
porque lhe deu a oportunidade de trabalhar com o ator Conrad Veidt, como um
mágico e hipnotizador que emprega suas habilidades numa tentativa de ganhar as
afeições de seu jovem assistente. Iluminação, sombras, close-ups,
superposições, flashbacks, elaborados movimentos de câmera e o mínimo de
intertítulos são usados para guiar o espectador através de uma intrincada
narrativa, embora o filme seja talvez mais interessante como um exemplo de quão
eficientemente as técnicas do cinema mudo poderiam ser empregadas para retratar
emoções e relações complexas do que por seu enredo um tanto melodramático.
Ainda sob o patrocínio de seu amigo Laemmle Jr., ele foi designado para a
superprodução imensamente cara do musical Broadway,
que foi filmado tanto como um filme silencioso quanto sonoro. Grande parte do
orçamento do musical foi para a construção de uma boate espetacularmente
elaborada e, com a colaboração completa de seu cinegrafista, Hal Mohr, para a
invenção e para o uso espetacular de um enorme guindaste de câmera que rondava
e mergulhava sobre o set para um efeito criativo surpreendente. Numa época em
que a tecnologia nascente de gravação de som estava inibindo o movimento de
câmera expansivo que havia marcado os melhores filmes mudos, Fejös merece tanto
crédito quanto Lubitsch e Rouben Mamoulian por ajudar a libertar a câmera.
O
filme foi um sucesso comercial e crítico, mas Fejös estava insatisfeito com as
restrições impostas a ele por uma produção tão grande e encontrou um argumento
sobre um dançarino supostamente pequeno (Glenn Tryon) que sonhava em chegar ao
topo (apesar de já estar trabalhando numa enorme boate). Sua insatisfação
continua na sua próxima missão, um drama histórico, Captain of the Guard (1930), no qual ele se feriu (possivelmente de
modo deliberado) em um estágio inicial de filmagem e teve que ser substituído.
Ele tinha grandes esperanças de poder dirigir Nada de Novo no Front, mas este foi designado a Lewis Milestone, e
Fejös recebeu para si King of Jazz
(1930), um tributo a Paul Whiteman. Embora ele pareça ter trabalhado no filme,
este é creditado oficialmente a John Murray Anderson. Finalmente, ele quebrou
seu contrato com a Universal e ficou na lista negra por um tempo. Foi então
contratado pela MGM para dirigir uma das tentativas de curta duração de
produzir versões "internacionais" de filmes sonoros, fazendo versões
em francês, alemão e outras, usando os mesmos sets, movimentos de câmera e ação
para cada um, simplesmente substituindo os atores americanos com outros de
nacionalidade apropriada. Fejös dirigiu as versões francesa e alemã de The Big House, com alguns críticos
preferindo essas à original americana, dirigido por George Hill.
Porém,
Fejös se cansou de Hollywood e decidiu abruptamente retornar à Europa em 1931.
"Achei Hollywood falsa", disse ele a John W. Dodds mais tarde. “Eu
achei tudo artificial. Achei as pessoas impossíveis... escritores - os chamados
escritores - totalmente sem inteligência, totalmente ignorantes, ‘stupid hacks’”. Ele foi primeiro para a
França, onde dirigiu uma versão em longa-metragem da série silenciosa Fantômas
em 1932, e depois voltou para a Hungria, levando consigo a bela e altamente
popular estrela francesa Annabella. Lá, com a liberdade artística recuperada,
ele fez dois filmes impressionantes: Lenda
de Amor (1932) com Annabella estrelando como uma garota inocente que é
seduzida e abandonada pelo filho de seu empregador e que, então, grávida, é
expulsa por aldeões hipócritas de sua vila; e o recentemente redescoberto Tempestade em Balaton (1933), centrado
em dois amantes separados pelo casamento forçado da mulher, imposto a ela por
seu pai rico. O tratamento simpático, humano e sem julgamentos de ambos os
filmes em relação ao comportamento "imoral" e seu ataque à vida e aos
valores de mente-pequena e reacionários dos vilarejos despertaram grande
indignação na Hungria, e Fejös iniciou suas viagens novamente, desta vez para a
Áustria, onde fez dois filmes, um dos quais, Sonnenstrahl (também conhecido como Ray of Sunshine, 1933), novamente estrelado por Annabella, tem
fortes afinidades com Solidão em sua
representação de um jovem casal lutando para sobreviver em uma situação de
desemprego e exploração.
Fejös
foi então abordado pela Nordisk Film na Dinamarca, que estava ansiosa para
elevar o prestígio dos filmes dinamarqueses no exterior e achou que um diretor
com experiência em Hollywood poderia ajudar. Ele se mudou para a Dinamarca em
1934 e fez três filmes para a companhia, o melhor deles, e seu favorito, sendo The Golden Smile (1935), no qual uma
grande atriz descobre que levou sua atuação tão a fundo em sua vida que não é
mais capaz de ser sincera. Nenhum deles, porém, foi um grande sucesso crítico
ou popular, e agora Fejös estava começando a se cansar de tentar agradar aos produtores
que raramente entendiam ou aceitavam sua visão. Mas a Nordisk se recusou a
libertá-lo de seu contrato. Então, no que desencadeou mais uma mudança abrupta
de carreira, ele anunciou que faria outro filme só se pudesse filmar em
Madagascar (lugar que ele aparentemente selecionou aleatoriamente em um mapa de
parede e achou que seria interessante de visitar). Para sua surpresa, o estúdio
concordou, e produziu lá o primeiro de vários estudos etnográficos que o
ocuparam exclusivamente até 1941 e que acabaram sendo financiados pelo Swedish
Film Institute. Eles foram filmados de forma variada na Ásia, na África e na
América do Sul, e neles Fejös mostra o maior respeito e simpatia pelos povos
nativos que ele fotografa e por seus respectivos modos de vida, recusando-se a
explorá-los ou manipulá-los de qualquer maneira. A única exceção ao seu
processo de simplesmente registrar aspectos de sua vida diária, cerimônias e
rituais foi A Handful of Rice (1940),
filmado na Tailândia, que combinou elementos documentais e narrativos,
acompanhando um jovem casal no primeiro ano de casamento e em suas dificuldades
e até mesmo desastres que encontram na tentativa de ganhar a vida, sobrevivendo
através de uma mistura precária de sorte e esforço, muitas vezes ingrata (um
tema familiar a Solidão e Sonnenstrahl). O filme foi mais tarde
lançado pela RKO, sob o título The Jungle
of Chang, mas, significativamente, não contava com o prólogo, que mostra um
casal bem-sucedido na Suécia jogando fora como sinal de desperdício o
"punhado de arroz" que representa a luta dura do casal para
cultivá-lo no ano – e, por omitir isso, ignora o
tema central do melhor trabalho de Fejös: que todos mereçam a oportunidade de
ter sucesso na vida e serem felizes e que é uma ofensa à dignidade humana negar
ou frustrar isso.
Em
1941 o trabalho antropológico de Fejös lhe rendeu um convite para se tornar
diretor de pesquisa do recém-criado Viking Fund em Nova Iorque – mais tarde
chamado de Fundação Wenner-Gren –, onde ele acabou se tornando presidente e é
tido como uma grande influência no desenvolvimento e na direção da pesquisa
antropológica na América e em outros lugares. Morreu em 1963, encerrando a
última de suas várias vidas - todas marcadas por grandeza e compaixão,
incluindo um pequeno, mas rico, legado de filmes importantes que estão
finalmente ganhando o reconhecimento que merecem.
(Publicado
originalmente em: https://www.criterion.com/current/posts/2437-the-travels-of-paul-fejos;
Tradução: Beatriz Saar e Yuri Ramos)
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