quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

“A Intrusa” e os desafios da adaptação



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            Carlos Hugo Christensen foi, em relação à “Intrusa”, um de seus últimos filmes, um obstinado. Conhecedor da obra de Jorge Luís Borges, seu conterrâneo argentino, participou de um pequeno litígio prévio para adquirir os direitos do texto e de um posterior a este, com estrangeiros que estavam interessados em comprá-los de si, para realizar a adaptação no exterior. Christensen, como sabemos, não os vendeu. Queria fazer este filme.  
            E o fez, mesmo à custa dos espinhosos problemas que se decorreram na produção. Os textos abaixo são extraídos de jornais que alardearam o filme na época da estreia e que dão conta dos relatos que o artista nos lega sobre as dificuldades da adaptação, principalmente na reconstrução do cenário dos pampas que remontam o século retrasado.
            O mais impressionante nisto é o rigor que o diretor empregou nesta reconstrução histórica, que parece acima do comum: chegou a construir casas inteiras como as do fim dos anos 1890, e com pedras de edifícios realmente erigidos na época. Para imitar o vento mítico do minuano, usou dois aviões estrategicamente posicionados.
            Além dos relatos de Carlos Hugo Christensen, compilamos ainda um outro depoimento, de Ubirajara Raffo (que trabalhou em diversos momentos da produção), que dá conta das dificuldades impostas pelo realismo pretendido pelo diretor e pelos que lhe auxiliaram. Os testemunhos foram extraídos do Correio do Povo e do Estado de Minas, ambos do ano de 1980.

***

Entrevista a Carlos Hugo Christensen
Correio do Povo, 4 de abril de 1980

            “Correio do Povo – A história de ‘A Intrusa’ exerceu algum fascínio especial sobre você, ou foi apenas uma questão de oportunidade?
           
            Carlos Hugo Christensen - A chance de levar ao cinema essa pequena obra-prima representa para mim o mais precioso presente que recebi em toda a minha carreira. Realizei 'A Intrusa' com toda a paixão que sinto pela obra de Borges, da qual sou admirador confesso e que conheço profundamente. Aliás, poderei não vir a ser um grande intérprete de Borges mas, tranquilamente, sei que sou um dos maiores conhecedores de sua obra. Não me limitei a narrar com imagens o belo conto, procurei também, sem prejudicar seu ritmo, colocar vários símbolos que marcam constantemente a literatura de Borges.

CP - A história de 'A Intrusa' passa-se em 1890, em Uruguaiana, no Sul do país. De lá para cá, muita coisa deve ter mudado ali. Você encontrou dificuldades na ambientação da história, por causa disto?

CHC - 'A Intrusa' foi um filme cheio de problemas, que começaram a surgir desde a época de sua preparação, no inverno de 78. Durante 60 dias,em Uruguaiana, eu, meu assistente Francisco Marques e Daniel Carvalho, o chefe da produção, planificamos a futura filmagem. Como em Uruguaiana,pouco ou quase nada restou das construções do século passado, foi necessário levantar todos os cenários, para filmar dentro e fora deles. Escolhidos os lugares, estudados os cenários a serem levantados e as indumentárias, tarefa de minuciosa pesquisa na qual contamos com a colaboração valiosa do folclorista e pesquisador Ubirajara Raffo Constant - que, junto com Orígenes Lessa, colaborou nos diálogos -, tivemos que enfrentar outros tipos de problemas, como a presença constante de eucaliptos na paisagem.

CP - 'Minuano', temido e conhecido vento dos pampas, tem presença significativa no conto de Borges. Aliás, parece ser um dos elementos mais fortes, numa das cenas mais importantes da história. Como você pôde reproduzi-lo?

CHC - A reprodução do Minuano, o Destruidor vento dos pampas, significou outro sério obstáculo a vencer; foi necessário improvisar uma pista de pouso no meio do campo, perto do cenário principal, para que pudessem pousar dois aviões, sem os quais teria sido impossível imitar um dos fenômenos mais gaúchos da natureza: o vento pampeano. E, para mencionar apenas um dos imprevistos, registre-se o fato de que o rio Uruguai subiu 11 metros, numa época em que as enchentes são raras, alagando os campos e paralisando as filmagens por 3 semanas. Há uma superstição do pessoal de cinema que diz que filme que enfrenta problemas durante as filmagens é sucesso garantido: espero que ‘A Intrusa’ confirme essa crença”.

Ubirajara Raffo e o problema dos eucaliptos
Estado de Minas, 24 de agosto de 1980

"'O mais difícil - diz Ubirajara - foi o cenário da época. Desenhei um rancho de pedra típico do fim do século passado. Ranchos iguais aos do tempo da história desapareceram da paisagem Gaúcha. A saída que encontramos foi construir um, para a qual contamos com o auxílio de Hermes Silva Pinto, que nos forneceu as pedras de uma mangueira de seus campos, com mais de cento e cinquenta anos. E assim, pedra por pedra, nasceu o rancho dos irmãos Nielsen. Também foram construídos o galpão, o poço de água, o forno, um curral, de pau-a-pique e outras coisas que formavam o cenário de um rancho'.
Problema ainda maior do que reconstruir um rancho de pedras empilhadas com paredes de 1 m de espessura, foi evitar o enquadramento dos Eucaliptos, árvores alienígenas que hoje tomam conta das coxilhas.
'Originária da Austrália, essa árvore não existia no Rio Grande do Sul na época da história - informa Ubirajara. Novamente Hermes Silva nos socorreu: em seus campos havia um grupo de umbus - árvore nativa dos Pampas - no alto de uma coxilha. Lá foi edificado o rancho do Nielsen".

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